Marrocos e suas relíquias

Novos fósseis no Marrocos apontam que a espécie humana é mais antiga do que se pensava
Mariana de Cássia Bisio
Camila Fernanda Panzeri
Carolina Santa Isabel Nascimento
Bernardo de C. P. e M. Peixoto
decassiabisio@gmail.com

 

 

 
Sítio arqueológico e zoom da mandíbula encontrada. Fonte: Comunicado para imprensa do Instituto Max Planck (EVA). Autores: Shannon McPherron e Jean-Jacques Hublin.   

A palavra relíquia, nome dado ao que resta dos santos ou aos objetos que pertenceram a um santo ou tiveram contato com seu corpo, tem sido informalmente estendida para definir algo precioso e antigo. Nesse sentido mais amplo, uma nova relíquia foi descoberta recentemente no Marrocos: um tesouro científico. São os fósseis humanos mais antigos já encontrados até então, indicando que o surgimento da nossa espécie ocorreu pelo menos 100.000 anos antes do que se pensava. O conjunto de fósseis foi encontrado no sítio arqueológico de Jebel Irhoud e ajudam a entender quando o Homo sapiens divergiu do grupo dos Homo heidelbergensis, contribuindo para a nossa compreensão da história evolutiva da espécie humana e sua dispersão pelo planeta Terra. Alguns fragmentos de crânio já haviam sido encontrados neste mesmo sítio em escavações da década de 1960, e naquela ocasião foram atribuídos à espécie neandertal. Entretanto, novos fragmentos, associados à novas tecnologias de datação e de reconstrução digital, levaram a uma nova classificação desse material, apontando maior afinidade com a nossa espécie (Homo sapiens).

Localizado no norte da África, o Marrocos é conhecido não só pelas lindas paisagens desérticas, mas também pela grande quantidade de tesouros arqueológicos e paleontológicos. Isso tem uma explicação: no passado, a região do Magrebe (que inclui o Marrocos) era muito diferente da paisagem desértica atual. O ambiente era mais úmido, permitindo a existência de uma savana com ampla diversidade de vida. Tais condições favoreceram a preservação de fósseis, tornando possível conhecer a vida nesse ambiente antigo, incluindo formas humanas antigas (chamadas pelos cientistas de hominíneos), que trazem informações importantes sobre a história evolutiva da nossa espécie. 

 
Reconstrução do crânio e fragmentos utilizados. Fonte: Comunicado para imprensa do Instituto Max Planck (EVA). Autor: Sarah Freidline.  

Fragmentos do primeiro crânio adulto foram acidentalmente encontrados na região em 1961, durante atividades de mineração, dando início a escavações arqueológicas nesta área e a descoberta de um rico sítio paleontológico que incluía também um extenso conteúdo faunístico do Pleistoceno. Os fragmentos do crânio tiveram, na época, sua antiguidade estimada em cerca de 40 mil anos. Porém, para esta datação, os cientistas não consideraram alguns fósseis da fauna que os acompanhavam. Foi apenas em escavações mais recentes que os pesquisadores puderam realizar a montagem de uma linha cronológica dos depósitos fósseis, além de encontrar novos fragmentos que foram utilizados no estudo. O novo material encontrado apresentava uma grande semelhança com o material das primeiras escavações, demonstrando que pertencia a uma mesma camada de sedimento e a uma faixa de tempo bem delimitada. Entre os novos materiais, foram encontrados um crânio adulto, fragmentos de face, elementos pós-cranianos (ossos do esqueleto), dentes e uma maxila quase completa, pertencentes a indivíduos com diferentes idades de desenvolvimento.

Novas análises envolvendo comparação morfológica e métodos mais recentes de datação foram aplicadas aos fragmentos antigos e às novas amostras, possibilitando a reconstrução digital de um crânio completo cujas características proporcionaram novas possibilidades de interpretação. A primeira é que Homo sapiens do norte da África teriam hibridizado com Neandertais (Homo neanderthalensis). A segunda refere-se a uma forma ancestral de Homo sapiens, divergente de Homo heidelbergensis, fornecendo evidências de uma fase inicial da evolução daquele hominíneo na África, com data de surgimento há quase 300 mil anos, cerca de cem mil anos mais antiga do que se pensava. Esses hominíneos de Jebel Irhoud seriam representantes norte-africanos mais antigos, confirmando a origem africana da espécie. As análises também sugerem divergência de trajetórias evolutivas entre as formas arcaicas do Pleistoceno Médio Africano e formas mais antigas de Homo sapiens, reforçando a hipótese de uma mudança anatômica rápida ou de uma mudança anatômica fruto de cruzamento entre diferentes espécies que habitavam o mesmo ambiente.

 
   Crânio finalizado e suas principais características. Fonte: Comunicado para imprensa do Instituto Max Planck (EVA). Autor: Philipp Gunz.

Além dos incríveis avanços na compreensão do aparecimento e história evolutiva da espécie humana, o estudo demonstrou como a aplicação de análises com tecnologias de ponta permite a obtenção de informações inéditas, tanto em novas descobertas como em fósseis já coletados no passado. Também demonstrou que sítios paleontológicos já conhecidos há muito tempo provavelmente ainda guardam importantes tesouros a serem descobertos. Resta aos cientistas continuar procurando, seja onde fósseis já foram encontrados, ou prospectar por novas localidades, e inovar ao explorar as possibilidades de responder perguntas complexas com a aplicação das novas técnicas de análises que surgem a cada dia.

 

A jornada humana

O gênero Homo está intimamente associado ao que pesquisadores consideram como sendo humano, por isso há grande curiosidade sobre seu local de origem e época de surgimento, que provavelmente ocorreu entre dois e três milhões de anos, com o aparecimento dos primeiros exemplares do Homo habilis. Descobertos pela primeira vez em 1960 na Tanzânia, com cerca de 1,8 milhões de anos, os restos de Homo habilis foram um dos grandes marcos para o gênero Homo, pois com eles foi encontrada grande quantidade de ferramentas de pedra lascada, sugerindo grande capacidade mental e habilidades manuais, além de contribuir para as ideias que colocam o continente Africano como centro de origem e dispersão do gênero. Evidências mostram que o Homo habilis transitava entre o ambiente arbóreo e terrestre, enquanto o Homo erectus, que teria surgido pouco mais tarde, era estritamente bípede. Homo erectus já apresentava semelhança morfológica com o Homo sapiens, sugerindo uma ligação direta entre essas duas linhagens. Seus registros indicam que este já estava presente há 1,8 milhões de anos na região do Quênia, o que sugere a convivência em tempo e espaço com os primeiros hominíneos, incluindo Homo habilis. Sua dispersão ocorreu por grande parte da Europa e Ásia, dando origem ao que se consideram variações regionais desta espécie. Existem diversas hipóteses que tentam explicar a dispersão dos hominíneos fora da África e o período em que se deu, acreditando estar relacionada a uma tendência evolutiva de aumento do volume do cérebro. Além dessa característica, podemos relacionar também o aumento da estatura e do tamanho dos membros inferiores, e a diminuição do tamanho dos braços, com essas proporções entre os membros sendo também fatores vantajosos ao pioneirismo do Homo erectus nesta jornada. 

O Homo erectus que permaneceu na África continuou sofrendo modificações e, há cerca de 600 mil anos, deu origem a novas populações que possuíam um desenvolvimento craniano maior e grande semelhança com nossa espécie. É o chamado Homo heidelbergensis, que assim como alguns de seus antepassados, migraram para fora do continente, em direção ao Oriente Médio. Já fora da África, esses indivíduos deram origem a pelo menos duas diferentes espécies, Homo neanderthalensis (Neandertais) e denisovanos, enquanto os que permaneceram na África deram origem a uma variante que hoje se conhece como Homo sapiens (a nossa espécie), há cerca de 200 mil anos.  

A primeira onda de migração do Homo sapiens para fora da África provavelmente ocorreu há 120 mil anos, colonizando a região onde hoje é Israel e Palestina. Uma segunda grande migração, há cerca de 50 mil anos, foi responsável pela dispersão e colonização da espécie, dessa vez por todo o planeta, substituindo, talvez por competição, os demais hominíneos - Homo neanderthalensis e denisovanos. Acredita-se que neste processo houve hibridação entre espécies, o que explicaria a presença de traços genéticos destas outras espécies no DNA de parte da população atual.

 

O povoamento da América. Qual a importância do Brasil nessa discussão?

O continente americano foi o último a ser habitado por humanos, sendo que, até então, só há evidências da ocorrência de uma única espécie, o Homo sapiens. A chegada dos primeiros grupos humanos na América é justamente um dos principais focos nas pesquisas em Paleoantropologia no Brasil. Até a década de 1970, a teoria vigente era a de chegada desses primeiros grupos entre 11 a 13.000 anos atrás, por meio do Estreito de Bering, uma conexão terrestre entre a Sibéria (Ásia) e o Alasca (América do Norte), que ficou exposta com a diminuição dos níveis dos oceanos no último período glacial. Essa teoria foi reforçada a partir da década de 1930, com o encontro de sítios na região do Novo México, nos Estados Unidos, onde havia, associados a ossos de megafauna, artefatos líticos apresentando uma cultura específica, chamada de Cultura Clóvis (nome da região onde se encontravam os registros). Esses achados originaram a hipótese do “Clovis-First”, que defendia a chegada dos primeiros humanos por essa rota terrestre, seguindo da Ásia para a América do Norte, e posteriormente se dispersando pela América Central e por fim chegando à América do Sul.

Entretanto, nas últimas décadas, novos sítios tão ou mais antigos do que os de Clóvis têm sido encontrados, especialmente na América do Sul, levando a discussões sobre novas possibilidades de rotas e de antiguidade de chegada dos primeiros humanos. Alguns dos que revolucionaram tais discussões foram os encontrados na região de Monte Verde, no Centro-Sul do Chile, com datações chegando a até 19.000 anos.

O Brasil também tem uma participação bastante importante nessas discussões, já que o território brasileiro abriga alguns dos mais antigos registros arqueológicos já encontrados em todo o continente. É o caso da região de Lagoa Santa (Minas Gerais), onde foi encontrada a famosa Luzia e outros indivíduos do seu grupo, apresentando características morfológicas que sugerem mais de um pulso de chegada de grupos humanos no continente. No Nordeste do país há os Parques Nacionais Serra da Capivara e Serra das Confusões, ambos no estado do Piauí, com mais de 1.000 sítios, alguns chegando a até 25.000 anos, o que seriam então os vestígios mais antigos de grupos humanos no continente americano. Além de sítios em outras localidades, como Santa Elina e Cidade de Pedra (Mato Grosso), Dourado, São Manuel e Analândia (São Paulo) e tantos outros nas diversas regiões do país, ainda aguardando para serem descritos e estudados.

 

Leituras sugeridas

  • Adovasio, James, M.; Page, Jake. Os primeiros americanos: em busca do maior mistério da arqueologia. Rio de Janeiro: Record, 2011.
  • Dillehay, Tom D.; Ocampo, Carlos; Saavedra, José; Sawakuchi, Andre O.; Vega, Rodrigo M.; Pino, Mario; et al. New archaeological evidence for an early human presence at Monte Verde, Chile. PLOS ONE (10) 11: 1-27, 2015.
  • Hublin, Jean-Jacques; Ben-Ncer, Abdelouahed; Bailey, Shara E.; Freidline, Sarah E.; Neubauer, Simon; Skinner, Matthew M.; et. al. New fossils from Jebel Irhoud, Morocco and the pan-African origin of Homo sapiens. Nature. 2017; (546):289-305.
  • Neves, Walter A.; Rangel Junior, Miguel J; Murrieta, Rui Sergio S. Assim caminhou a humanidade. São Paulo: Palas Athena; 2015.