Uma doce parceria

Uma relação especial entre homens e aves facilita a obtenção de mel e cera
Pedro Cristovão Carvalho
Anderson Augusto de Oliveira
Rosane Silva-Santos
pccrvl@gmail.com

 

Você já imaginou se, ao procurar por algo, pudesse ter a ajuda de um GPS especial que se move sozinho (voando!)? Em vez de ser guiado por uma voz eletrônica monótona dizendo: "Vire à esquerda a 100 metros", o som guia fosse de uma ave cantando?  Pesquisadores da Inglaterra e da África do Sul resolveram investigar um evento de ocorrência rara na natureza: seres humanos e animais selvagens se comunicando para a obtenção de um benefício em comum. Os pesquisadores Claire, Keith e Colleen investigaram se o som produzido por caçadores de mel, de uma tribo ao norte da República de Moçambique na África, era capaz de atrair uma certa espécie de ave. E se essa ave poderia guiá-los até os locais onde haviam colmeias de abelhas, de maneira mais eficiente do que se estivessem por conta própria.

A pesquisa

O estudo foi dividido em três etapas que visavam investigar o grau de confiabilidade da ocorrência dos eventos de caça ao mel. A primeira etapa buscou averiguar se as aves realmente estavam dando informações precisas sobre a localização das colmeias. A precisão foi medida por meio de um GPS eletrônico durante toda a busca. Os pesquisadores chegaram à conclusão de que 75% dos eventos guiados pelas aves levaram ao encontro de colmeias, o triplo do que conseguiriam sem essa ajuda. A etapa seguinte buscou compreender se o som produzido pelos caçadores era confiável para garantir que as aves o entendessem. Foram realizadas entrevistas com os caçadores nas quais se questionava como eles chamavam as aves, visto que a vocalização “brrrr, hum!” utilizada por eles, que efetivamente atrai e mantém a atenção das aves, consiste de um som aprendido com seus pais, passado há muito tempo de geração em geração.

A última etapa do estudo testou se o som emitido pelos caçadores era o que realmente atraía as aves. Para isso, foram realizados testes com diferentes sons na mesma amplitude do “chamado” dos caçadores em diversos locais da Reserva Nacional de Niassa, ao nordeste de Moçambique, onde fica a floresta em que ocorrem essas interações. O chamado típico dos caçadores e outros sons, como o de pombos, foram reproduzidos através de uma caixa amplificadora e observou-se que as aves responderam duas vezes mais ao ‘’brrrrr, hum’’. Portanto, ao menos na localidade estudada, esse som é capaz de transmitir a informação de que existe um provável parceiro humano em busca de mel, que finalmente resultará no acesso fácil à cera como recompensa para a ave.

A importância dessa relação se destaca ainda mais, considerando o local onde ela ocorre. Trata-se de uma região que enfrenta problemas severos relacionados à obtenção de alimentos, uma vez que passa por períodos de secas drásticas capazes de acabar com colheitas inteiras. A região enfrenta ainda a recorrência de guerras civis, dificultando a entrada de alimentos vindos de outros países como suporte à essas secas drásticas. Assim, o mel serve como fonte alimentar durante esses períodos, uma vez que a tribo não depende exclusivamente da colheita para obtenção de alimentos, podendo sobreviver até o retorno das chuvas ou do suporte externo, explica a pesquisadora Claire Spottiswoode, líder da pesquisa.

As aves

Captura de espécime de Indicator indicator. Fonte: Claire Spottiswoode.

A ave Indicator indicator, conhecida pelo nome popular indicador-grande (um nome que já diz muito), inicia sua vida de forma peculiar: os ovos dessa espécie são colocados em ninhos de outras aves e logo que os filhotes nascem, mesmo antes de conseguirem abrir os olhos, perfuram os ovos presentes no ninho hospedeiro. Impressionantemente, os pais que tiveram os filhos assassinados cuidarão do indicador-grande até que ele atinja idade suficiente para sair do ninho.

Após esse estágio, o sego (nome usado pelos moradores locais para se referirem ao indicador-grande) revela seu lado doce, ao menos para os humanos. Esse animal, que possui enormes órgãos olfatórios em comparação com outras aves, é ótimo em localizar colmeias de abelhas dentro de troncos de árvores. Ele também é capaz de digerir a cera presente nessas colmeias, algo incomum entre os animais em geral. Só que há um problema: caso tentem pegar a cera sozinhos, as abelhas irão defender seu território e esse ataque pode ser letal ao sego, que não é imune à toxina delas.  Nesse momento, entra em ação a parceria com os caçadores de mel, que possuem a habilidade para espantar as abelhas e retirar a colmeia da árvore.

A relação entre os caçadores e as aves é impressionante. Tudo se inicia quando os caçadores vocalizam um som (“brrrrr, hum!”), que pode variar dependendo da região. O sego então se aproxima e indica mais precisamente a localização das colmeias, indo de árvore em árvore. Após encontrarem as colmeias, os caçadores extraem mel e deixam a cera exposta e vulnerável para o sego. O mais interessante é que essa interação pode também ser iniciada pela ave: quando o indicador-grande quer cera, costuma procurar as pessoas e fazer sons distintos de forma a ser notado, até que comece a ser “seguido” por alguém.

Além do Mel

É importante ressaltar que existem pouquíssimos estudos envolvendo eventos de mutualismo, ou seja, uma relação que gera benefícios para ambas as partes, entre seres humanos e animais selvagens. O que pode ser mais comum é a observação de interações em que o benefício ocorre apenas para os humanos, ou seja, uma relação unilateral. Além do estudo aqui descrito, existem alguns trabalhos que investigaram a relação de humanos e golfinhos durante a pesca em regiões de águas profundas. Pescar nesses locais pode ser um problema, pois as redes não são capazes de alcançar o fundo e, consequentemente, os peixes conseguem passar por baixo dela e escapar. Nesse momento, os golfinhos entram como auxiliares muito importantes, cercando os peixes de um lado, enquanto a rede cerca do outro, impedindo qualquer rota de fuga e facilitando a captura. Finalizada a pesca, ocorre uma divisão do prêmio entre os trabalhadores (golfinhos e pescadores). Nesse caso, a relação é iniciada por um chamado característico por parte dos pescadores, de maneira similar ao observado com o Indicador-Grande, esse sinal é reconhecido pelos golfinhos que guiam o nado em direção aos pescadores, cercando os peixes e aumentando o sucesso da pesca.

A raridade de eventos mutualísticos envolvendo humanos é representada pelo baixo número de trabalhos na área. Uma busca bibliográfica feita em bancos de dados brasileiros onde, além do estudo com golfinhos já descrito anteriormente, não existem publicações em andamento relatando alguma nova relação mutualística envolvendo humanos. Assim, os estudos descritos acima demonstram a raridade e a importância das relações mutualísticas entre humanos e animais selvagens na obtenção de alimentos, indicando que tribos ou pequenas populações ainda mantém relações estreitas de comunicação com animais selvagens. Possivelmente, um maior número de casos envolvendo tais interações estejam escondidas nessas comunidades isoladas, onde as relações entre o homem e a natureza permanecem em maior harmonia do que observado nas grandes cidades. Ainda há muito o que se conhecer.

 

Leituras Sugeridas

  • Kuznar LA. Mutualism between Chenopodium, herd animals, and herders in the south central Andes. Mountain Research and Development. 1993; 257-265.
  • Spottiswoode CN, Begg KS, Begg CM. Reciprocal signaling in honeyguide-human mutualism. Science. 2016; 353(6297):387-389.
  • Busnel RG. Symbiotic relationship between man and dolphins. Transactions of the New York Academy of Sciences. 1973; 35(SeriesII):112-131.