A saúde em cápsulas

Uma visão bioética sobre a indústria farmacêutica e sua influência na saúde pública brasileira
Isabela Bozzo
isatbozzo@gmail.com

É inegável que transformações sociais e políticas estão associadas com avanços da Ciência e Tecnologia. Porém, quando se avalia as implicações e o sentido dessas mudanças, vê-se que a garantia do estabelecimento dos direitos e da dignidade humana não é automática. O embate que pode se dar entre o avanço técnico-científico e a preocupação com a vida nos leva ao questionamento e à preocupação com esses “avanços”. Para criar consensos e limites éticos na pesquisa científica, surge a Bioética, um campo transdisciplinar que reúne as Ciências Biológicas e da Saúde, as Ciências Sociais e o Direito

Retrospectiva

            O desenvolvimento da Ciência tal qual a entendemos hoje se iniciou a partir das ciências experimentais, tendo como marco referencial de seu surgimento o século XVI, com o trabalho do italiano Galileu Galilei. Não somente seus estudos foram de extrema importância, mas também sua postura perante o conhecimento era diferenciada, defendendo que a “verdade” não deveria ser aceita somente por afirmações de grandes autoridades como a Igreja, mas que esta deveria ser buscada por meio de experimentos e observações. Assim, Galileu traz para a sociedade uma ideia revolucionária que se desenvolveu e culminou na Revolução Científica, que se estendeu até o século XVIII.

 

           Partindo dessa origem e dando um grande salto na história, chegamos ao século XX, quando testemunhamos mudanças sem precedente na sociedade e, especialmente, no desenvolvimento científico. Durante a Segunda Guerra Mundial, foi aprovado o projeto Manhattan, que resultou na descoberta e utilização da energia nuclear para a construção das bombas atômicas e na decisão política de lançá-las em Hiroshima e Nagazaki. Outro projeto, o Apollo, foi coordenado pela agência espacial americana (NASA) e levou o homem à Lua. Novamente alguns anos depois, em 1990, se iniciou o projeto Genoma Humano, um empreendimento internacional com o objetivo de mapear o genoma do ser humano e todos os nucleotídeos que o compõem.

            É nesse contexto que surge a necessidade ética de se pensar na repercussão e implicações das descobertas científicas e se constitui a bioética como uma nova perspectiva. O significado do termo bioética, derivado das palavras gregas bios (vida) e ethos (relativo à ética) expressa, em linhas gerais, a preocupação com a ética sobre a vida, incluindo o estudo das dimensões éticas das ciências e do cuidado com a saúde, com um olhar interdisciplinar. A necessidade do estabelecimento de controle perante experimentações surgiu a partir de deslizes éticos que ocorreram ainda antes da década de 1940, mas foi somente a partir de 1980 que a Organização Mundial da Saúde (OMS), juntamente com o Conselho de Organizações Internacionais de Ciências Médicas, publicou um documento que estabelecia algumas diretrizes éticas para a realização de pesquisas. No Brasil, em 1988, o Conselho Nacional de Saúde estabelece de modo sólido as normas para a pesquisa em Saúde, levando em conta os princípios básicos da bioética: não-maleficiência, beneficiência, autodeterminação e justiça.

 

Indústria farmacêutica e saúde pública

            Um dos maiores avanços da humanidade em relação à saúde do ser humano foi o desenvolvimento de medicamentos. Antes da consolidação da indústria farmacêutica, os medicamentos já eram distribuídos por famílias de farmacêuticos, mas foi a partir do século XIX que a química se tornou uma ferramenta largamente utilizada para isolar componentes terapêuticos de plantas e transformá-los em remédios. Com a chamada “revolução molecular” (1980) e um mercado de empresas já estabelecido, muitos pesquisadores de diferentes áreas se reuniram para trabalhar com o desenvolvimento de fármacos para curar doenças cada vez mais complexas, o que consolidou a indústria farmacológica, que vinha se estabelecendo desde 1930. No Brasil, consolidou-se uma indústria farmacêutica integrada à indústria mundial, com uma estrutura de mercado baseada na presença de grandes laboratórios multinacionais e no investimento de capital estrangeiro.

 

            O acesso à saúde é um direito fundamental de todo ser humano, devendo o Estado garantir as condições necessárias ao seu exercício. Em nosso país, o Sistema Único de Saúde (SUS) prevê o acesso universal e equitativo às ações e serviços de saúde, independente do poder aquisitivo do cidadão, garantindo também assistência terapêutica integral, incluindo assistência farmacêutica (Art. 6º, Lei 8.080/1990). O acesso gratuito a medicamentos é maior entre a população de baixa renda, devido à sua maior dependência do SUS. No entanto, em algumas regiões brasileiras, mais da metade da população não tem acesso aos medicamentos de que necessita. Esse acesso – ou falta dele – envolve uma rede complexa de atores que desempenham diferentes papéis nos contextos econômico, social e político.

            Dentro desses contextos, a indústria farmacêutica exerce um papel fundamental no controle dos medicamentos, já que o fármaco entra também na logística industrial: investimento na produção do fármaco a partir de um princípio ativo e o dobro de investimento no marketing desse fármaco. Já que a maioria dos medicamentos necessita de prescrição médica, a estratégia de venda das empresas faz-se mediada pela relação de seus representantes com o profissional da saúde, o que pode resultar na perda da autonomia do próprio profissional e, também, de seu paciente. A relação instituída entre paciente, médico e indústria envolve uma série de questões delicadas, principalmente por interferir na saúde individual de cada pessoa, além de estar cada vez mais enraizada no campo da saúde, já que algumas indústrias patrocinam congressos de Medicina e dão “prêmios” aos médicos (amostras grátis de medicamentos). A partir disso, a venda de medicamentos cresce e o mercado é dominado por grandes laboratórios internacionais. Com uma sólida influência, as empresas constituem um mercado oligárquico e se especializam individualmente em linhas de pesquisa diferentes, evitando a competição de preços e qualidade, o que faz com que não exista incentivo para o melhoramento da qualidade dos produtos e para a diminuição do preço dos medicamentos. Nesse sentido, dados do Grupemef (Grupo de Profissionais Executivos do Mercado Farmacêutico) mostram que, no período de 1994 até 2001, o número de medicamentos (unidades) vendidos quase não variou, mas o valor faturado quase triplicou, ou seja, os preços dos medicamentos só aumentaram.

            Nessa relação da indústria com a saúde pública brasileira e o campo da bioética, alguns questionamentos são levantados, como aqueles sobre a interferência que a indústria causa sobre a autonomia do indivíduo perante sua saúde e, também, sobre o que a indústria farmacêutica impôs aos parâmetros médicos e éticos vigentes, instaurando uma nova visão em relação ao próprio corpo e como cuidá-lo. Nesse contexto, as questões éticas que envolvem a produção de fármacos precisam ser revistas, principalmente a questão da disponibilidade de medicamentos para a rede pública, que é essencial para todo e qualquer indivíduo e se coloca não apenas no Brasil, mas em todo o mundo.