Organismos modelo: um instrumento indispensável à Ciência

Ou sobre como um pequeno peixe, mantido facilmente em laboratório, pode ser um aliado em pesquisas com desdobramentos importantes para a saúde humana
Lucas Soler Ramos Terroni
luc_terroni@hotmail.com

A Ciência sempre teve muito interesse nas descobertas sobre a fisiologia dos organismos, buscando o seu melhor entendimento e, também, o uso desses organismos nas mais diferentes experimentações, visando, inclusive, aumentar nosso conhecimento sobre fenômenos relacionados ao bem estar do ser humano. Para que isso fosse possível, os cientistas utilizavam – e utilizam até hoje – os chamados “organismos modelo”, seres que, ao longo da história da Ciência, tornaram-se importantes ferramentas de estudo para pesquisas em várias áreas.

Dentre estes organismos modelo, podemos citar os camundongos e ratos de laboratório – os mais conhecidos, utilizados na experimentação em Psicologia, Medicina e Farmácia, por exemplo – e a mosca de fruta (Drosophila melanogaster) – utilizada principalmente nos estudos de Genética –, dentre outros. A escolha do organismo modelo pelo pesquisador não é casual e está relacionada às características do organismo e às questões que estão sendo pesquisadas e experimentalmente testadas.

 

O Paulistinha

Popularmente chamado de “paulistinha”, o peixe Danio Rerio (zebrafish, em Inglês) vem ganhando seu espaço em inúmeras áreas da Ciência, sendo cada vez mais utilizado pelos cientistas. Alguns grandes centros de pesquisas biomédicas já estão até mesmo projetando deixar de utilizar os ratos de laboratório ou utilizar os peixes de forma complementar nos estudos ainda realizados com camundongos e ratos.

(Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Brachydanio_rerio.jpg?uselang=pt-br)

O paulistinha teve seu genoma inteiramente concluído em 2013, quando se observou que há uma semelhança genética de 70% com os seres humanos, o que é um ponto positivo, ainda que o camundongo tenha uma semelhança de 85% com o nosso genoma. Muitos dos testes com o paulistinha incluem a investigação dos efeitos do estresse no sistema nervoso central (SNC) e no comportamento. Nesses casos, em particular, a utilização do peixe tem uma vantagem muito importante: enquanto em ratos e camundongos o hormônio que controla o estresse é a corticosterona, encontrada somente em pequenas concentrações nos humanos, no paulistinha o hormônio produzido nessas situações é o cortisol, o mesmo que ocorre em nós.

O paulistinha tem outras características que o deixam com vantagem sobre roedores e drosófilas para utilização nas pesquisas. Além do desenvolvimento do embrião do peixe ser externo, ele também é transparente, permitindo que muitos ensaios sejam realizados desde sua fase inicial de desenvolvimento até a sua maturidade. Também é possível, pela transparência dos embriões, observar os efeitos de determinados compostos nesses organismos. O paulistinha também tem uma taxa de reprodução muito elevada, podendo produzir em média 100 ovos por dia, enquanto os roedores produzem, em geral, 10 filhotes a cada dois meses. Uma outra variável muito importante é o baixo custo de manutenção diária desses animais. Gasta-se, em média, cerca de oito Reais para a manutenção diária de um roedor, enquanto o valor para a manutenção do peixe não ultrapassa 60 centavos.

Em cima está representado um embrião selvagem de paulistinha e o debaixo é um embrião mutante, modificado geneticamente, o qual não apresenta melanina, devido a uma modificação no gene que ativa a síntese de melanócitos.
(Fonte: Bradbury J: Small Fish, Big Science. PLoS Biol 2/5/2004: e148)
(Foto: Adam Amsterdam, Massachusetts Institute of Technology, Boston, Massachusetts, United States.)

Em termos ideais, o melhor organismo modelo para ser trabalhado seria o dos primatas, pela proximidade evolutivo com os humanos, o que ocorre em vários centros de pesquisa no exterior. No entanto, os custos são muito altos, além de ser necessário um espaço físico grande para sua manutenção. Por isso, os organismos modelo mais simples – como drosófila, roedores e, agora, o paulistinha – são a alternativa mais viável para a maior parte dos experimentos no Brasil.

 

Neurociência

Nesta última década, o paulistinha começou a ser utilizado em pesquisas na área da Neurociência e, embora sua utilização seja recente, muitas pesquisas já estão sendo realizadas. Os primeiros trabalhos com o peixe incluíam experimentos de comportamento e ansiedade, construindo uma importante base para trabalhos posteriores, como aqueles que têm o objetivo de amenizar a intensidade das crises de epilepsia.

Testes com toxicidade induzida por ferro, por exemplo, mostraram que os peixes, quando tratados com soluções ricas em ferro, acumulam esse metal em diferentes locais do organismo, tais como cérebro e fígado. Esse acúmulo de ferro pode estar relacionado com diversas doenças neurodegenerativas, como Alzheimer e Parkinson. Assim, utilizando esse organismo modelo, pretende-se desenvolver compostos que auxiliem no tratamento de pacientes com essas doenças.

 

Cardiologia

Outros experimentos importantes com o uso do paulistinha que estão sendo realizados atualmente estão relacionados ao coração e ao tratamento de problemas que o acometem, já que o coração do peixe guarda semelhanças relevantes com o nosso.

Testes mostraram que o paulistinha é capaz de regenerar o seu próprio coração. Para tanto, uma pequena incisão foi feita no coração desses organismos e, ao longo do tempo, foi possível observar que a perda de tecido cardíaco era rapidamente substituída. Utilizando microscopia eletrônica de transmissão, foi verificado que essa regeneração estava relacionada a células chamadas de cardiomiócitos, sendo resultado de sua proliferação e posterior diferenciação.

No entanto, ainda não se sabe exatamente a fonte e nem se conhece o mecanismo exato que essas células utilizam para realizar tal processo. Assim, o fenômeno ainda precisa ser melhor estudado. A compreensão de como o coração é regenerado poderá trazer pistas de como melhorar a terapia depois de ataques cardíacos em humanos, o que, mais uma vez, evidencia como o uso do paulistinha como organismo modelo pode ser relevante na descoberta de novos tratamentos e, até mesmo, da cura de doenças severas que custam a vida de milhares de seres humanos a cada ano.