O Cerrado agoniza esperando a resposta à pergunta: Qual é o modelo de desenvolvimento desejado pelo Brasil?

Com mais de 1,5% de perda anual do bioma, especialistas preveem que em 2030 teremos o total desaparecimento do Cerrado
Gabriela Pegler
gabipegler@hotmail.com

Considerado um hotspot de biodiversidade – área composta por grande diversidade biológica, alto número de espécies endêmicas e com elevado nível de degradação –, o Cerrado originalmente ocupava 204 milhões de hectares e, atualmente, atravessa seu momento mais crítico, perdendo mais da metade de seu território, com uma taxa anual de desmatamento de 3 milhões de hectares. Dentre as principais ameaças destacam-se os processos produtivos utilizados pela agroindústria, como a monocultura de soja, do algodão e do milho, além da pecuária extensiva; a introdução de espécies exóticas; o desequilíbrio dos estágios de queimadas; e a exploração do carvão feita pela indústria siderúrgica.

Diversas ações e estudos científicos são realizados com o objetivo de impedir o avanço da devastação desse importante bioma brasileiro, no qual se acredita ainda existirem inúmeras espécies não identificadas. Nesse contexto, um outro aspecto importante é a inexistência no Brasil de uma cultura de Cerrado, já que a própria população que vive ao lado das áreas remanescentes, com raras exceções, desconhece sua diversidade. 

Orquídea Sapatinho (Phragmiediem vittatum).
(Foto: Fernando Tatagiba.)

Para termos uma ideia da falta de estrutura existente no que concerne à preservação do Cerrado, um estudo de caso realizado no Distrito Federal (DF), denominado “Devastação da cobertura vegetal nativa no bioma Cerrado do Distrito Federal caracterizando a extinção de espécies da flora”, conclui que o grande problema dos remanescentes de Cerrado existentes no DF é que estão inseridos em Áreas de Proteção Ambiental (APA) que foram criadas de forma desordenada e que possuem em seu interior diversos conglomerados urbanos, tornando necessária e urgente uma revisão dos limites dessas áreas. Mas esta não é a única conclusão importante do trabalho, realizado pela estudante do curso de Tecnologia em Gestão Ambiental da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) Adriana Paparelli e pelo professor da Unisul Jairo Afonso Henkes.

Ainda mais alarmante é o fato apontado pelo estudo de que diversas espécies da flora no Cerrado do DF estão em processo de extinção. É o caso da Aroeira (Myracrodruon urundeuva), da Braúna (Sheinopsis brasiliensis), do Babaçu (Attalea brasiliensis) e da Orquídea Sapatinho (Phragmiediem vittatum), dentre outras. Considerando que cada espécie possui uma função específica e sinérgica dentro do ecossistema em que está inserida, preservar a flora do Cerrado é de suma importância na dinâmica de sustentabilidade desse bioma. Além dos aspectos de conservação ambiental, preservar o Cerrado significa proteger espécies com promissor potencial econômico, tais como plantas forrageiras, medicinais, alimentícias, corticeiras, taníferas, melíferas, ornamentais e fixadoras de nitrogênio.

O biólogo Rafael de Oliveira Xavier, doutorando em Ecologia na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), destaca o valor inestimável do Cerrado, ressaltando a presença de milhares de espécies de plantas, muitas delas endêmicas – ou seja, que só existem em regiões específicas –, que, segundo ele, fazem do Cerrado a savana mais rica do mundo. “Apesar de ser mais conhecido pelo público em geral pelas árvores e arbustos com aparência tortuosa e resistência ao fogo, na verdade a maior parte dessa diversidade está mais abaixo dos nossos olhos, no estrato herbáceo. São essas pequenas plantas, a maioria pouco conhecida da Ciência, que tornam o Cerrado ainda mais fascinante”, afirma o pesquisador. “Além das plantas, é importante lembrar a considerável diversidade da fauna do Cerrado, que se estende muito além dos conhecidos lobo-guará, tamanduá-bandeira e ema. Devido em parte ao ambiente quente e seco que predomina durante o ano, a maior parte da fauna do Cerrado é pouco visível ao observador São várias espécies endêmicas de roedores, répteis e aves cuja atividade geralmente não é percebida. Se considerarmos os invertebrados, essa fauna vai ainda mais além. As formigas e cupins são representados por diversas espécies, e são os grandes pastadores do Cerrado”, complementa Xavier. O pesquisador destaca também, em uma perspectiva antropocêntrica, a série de serviços ambientais que são, de alguma forma, mantidos pelo Cerrado. “O Cerrado abriga nascentes de alguns dos principais rios brasileiros, entre os quais os rios São Francisco, Tocantins, Paraguai e Paraná. Várias frutos e flores do Cerrado têm potencial para exploração comercial, e programas de uso sustentável desses recursos devem ser uma ferramenta valiosa em contraponto ao avanço da fronteira agrícola sobre o Cerrado”, alerta.

Nesse cenário de degradação ambiental vivido pelo Cerrado, consequências desastrosas se manifestam. “O declínio de populações de animais com área de vida maior é inevitável, mas em longo prazo várias espécies podem ser ameaçadas pelo processo de fragmentação. Matrizes agropastoris com baixa permeabilidade e a falta de conectividade entre os fragmentos podem causar a perda de funções ecológicas essenciais à manutenção da alta diversidade do Cerrado, e consequentemente levar à simplificação desses ambientes. Além disso, a alteração do regime de perturbações no Cerrado, particularmente o aumento da frequência de incêndios devido às atividades antrópicas, tem prejudicado o processo de regeneração nessas áreas já severamente comprometidas. Esse efeito é amplificado pela presença de várias espécies de gramíneas africanas no Cerrado. Altamente produtivas e muitas vezes mais resistentes ao fogo, tais espécies ocorrem na maioria dos remanescentes de Cerrado e podem dominar o estrato herbáceo em detrimento de espécies nativas. Diante da manutenção das pressões exercidas e da ausência de ações de manejo, áreas de Cerrado com alta diversidade têm sido convertidas em pastos de gramíneas africanas com algumas árvores e arbustos esparsos. Evidentemente essa degradação compromete toda a dinâmica do Cerrado, inclusive a oferta de serviços ambientais para o Homem”, explica Rafael Xavier.

 

Políticas necessárias

No estudo de caso realizado no Cerrado do Distrito Federal, os autores adotaram, dentre outros procedimentos de coleta de dados, entrevistas com os atores responsáveis pelos setores estratégicos das áreas de proteção ambiental, com a finalidade de coletar as informações necessárias sobre a devastação da cobertura vegetal e as espécies da flora em extinção. Também fizeram observações de campo para verificar a realidade da cobertura vegetal nativa; coleta de documentos – tais como registros formais e artigos da mídia regional, além de relatórios de pesquisas já realizadas – visando melhor compreensão da necessidade da cobertura vegetal nativa na conservação do bioma; e coleta de dados de arquivos contendo mapas geográficos do Cerrado do Distrito Federal, para analisar as áreas originais e as afetadas pela ação humana.

Cerrado ralo de Brasília.
(Foto: Marcelo Leite.)

Essencial para o estabelecimento de ações de manejo para a recuperação e preservação do bioma Cerrado, o estudo prioriza a coleta de indicadores qualitativos e estabelece algumas diretrizes e ações que pretendem minimizar o atual estado de degradação existente, tais como a criação de fundo participativo gerido pelo Governo Federal, cujo objetivo seria financiar projetos de conservação do Cerrado; a criação de novas Unidades de Conservação, além da reestruturação da fiscalização daquelas já existentes; a criação de plano de manejo para restaurar as áreas degradadas; a criação de banco de dados com espécies da flora ameaçadas de extinção; a criação de postos de observação de queimadas na época de estiagem; e a implantação de um programa de monitoramento continuado por satélite.

As propostas sugeridas pelo estudo para a intervenção nos problemas apresentados podem ser ampliadas para atender a todas as regiões onde o Cerrado se apresenta, já que os agentes causadores da degradação estão presentes em todas as regiões. A ação humana fundamentada na falta de políticas públicas voltadas à preservação do Cerrado, somada aos interesses econômicos e à inexistência de planejamento urbano, são as principais causas do problema sofrido pelo Cerrado, e diversos estudos científicos convergem para as mesmas conclusões. É, assim, muito importante o despertar para uma consciência conservacionista, e os esforços para tanto são responsabilidade de todos os atores do processo.

 

Leituras sugeridas

  • PAPARELLI A., HENKES J. A. DEVASTAÇÃO DA COBERTURA VEGETAL NATIVA NO BIOMA CERRADO DO DISTRITO FEDERAL CARACTERIZANDO A EXTINÇÃO DE ESPÉCIES DA FLORA. Revista Gestão e Sustentabilidade ambiental, Florianópolis, v.1, n.2, p. 241-256, Out. 2012/Mar. 2013.
  • DUBOC, E.; COSTA, C. J.; VELOSO, R. F.; OLIVEIRA, L. dos S.; PALUDO, A. Panorama atual da produção de carvão vegetal no Brasil e no Cerrado. In: SIMPÓSIO NACIONAL CERRADO, 9.; SIMPÓSIO INTERNACIONAL SAVANAS TROPICAIS, 2., 2008, Brasília, DF. Desafios e estratégias para o equilíbrio entre sociedade,agronegócio e recursos naturais: anais... Planaltina, DF: Embrapa Cerrados, 2008. 1 CDROM.