A neurociência do sono

Que dormir bem é essencial para uma vida saudável, todo mundo sabe. Mas por quê? A ciência explica o que você faz enquanto não está fazendo nada
Vítor Ferreira Campos
vitorf.campos@hotmail.com

Comportamento por impulso, menor tempo de reação, menor percepção do que está ao seu redor e diminuição nas respostas cognitivas. Poderia ser um quadro clássico de uma noite regada à álcool, mas é apenas o que a falta de sono faz com você. Dormir é tão importante que, caso você fique 2 dias sem uma boa noite de sono, seu sistema imune começa a se desregular. Depois de 3 dias sem dormir, há relatos de pessoas que começaram a ver alucinações. Não bastassem os efeitos fisiológicos, estudos mostram que indivíduos que não dormem bem, apresentam um aspecto menos saudável e dessa forma, menos atraente ao sexo oposto. Sim, já sabemos que dormir é importante. Mas por quê? Qual a função do sono? 

Existe um grande debate no meio científico quanto a função do sono. No entanto, entende-se que não há apenas uma função principal, mas sim diversas. Entre elas: limpar as toxinas do cérebro, recuperar metabólitos que foram despendidos durante a vigília, regular hormônios do corpo e consolidar memórias. 

Desde o início da vida na Terra existem os ciclos claro e escuro, e tais ciclos criaram mecanismos circadianos, ou seja, nosso relógio biológico que regula nosso corpo durante os perídos diurno e noturno. Os primeiros estudos cognitivos do sono foram realizados por volta de 1924, em que cientistas demonstraram que quando pessoas estão aprendendo sílabas de uma nova  língua, há um decaimento exponencial de quantas sílabas elas conseguem se lembrar ao longo do tempo. No entanto, caso exista um período de sono após o aprendizado, tal decaimento ocorre de forma menos intensa. Outros experimentos realizados na década de 90 mostraram como a privação do sono afeta diretamente a consolidação das memórias. Em 2004, um grupo de cientistas alemães apresentaram a teoria que o sono possui  relevância na formação de ‘insights’, isto é, ideias originais. Tais ideias são geradas pela junção de diversas ideias antigas da sua mente que são recombinadas. O sono seria o momento mais propício para essa recombinação, como já relatado por diversos artistas, músicos e cientistas. Tal recombinação também ajudaria a encontrar a solução de problemas específicos do dia a dia.

Durante a noite, nós temos de quatro a cinco ciclos de sono, os quais são formados por dois tipos sono. O primeiro possui ondas lentas, em que não há a sensação de sonho. O segundo tipo, conhecido como sono REM (Rapid Eye Moviment), devido ao movimento que nossos olhos realizam durante essa fase, é o que se caracteriza a fase em que os sonhos acontecem tipicamente. 

   Fases do sono. Fonte: http://www.naiaodonto.com.br/sono-qualidade/

O som do despertador que nos acorda pela manhã normalmente interrompe algum desses ciclos, o que não é saudável. Nos dias de hoje, vivemos na era da privação do sono, em que a parcela do nosso dia que era dedicada a deitar na cama e dormir, vem sendo cada vez mais negligenciada, seja por mais trabalho, seja por mais entretenimento. Adolescentes precisam em média 9 horas de sono, enquanto adultos precisam de 8 horas. Pessoas que trabalham durante a noite lutam constantemente contra o próprio relógio biológico do sono, por mais que eles durmam 8 horas por dia. Isso porque, ao longo da evolução, nosso corpo foi condicionado a permanecer no estado de vigília durante o dia e em repouso durante a noite. Dessa forma, ainda que esses trabalhadores consigam a quantidade de tempo de sono teoricamente necessária para uma vida saudável, seu próprio ciclo circadiano atua de maneira oposta. Além disso, Rimenez Souza, pesquisador do departamento de psicologia da UFSCar, alerta sobre a relação entre sono e transtornos de ansiedade: “Estudos apontam que quase todos os pacientes diagnosticados com algum transtorno de ansiedade apresentam alterações significativas nos ciclos do sono, refletindo em quadros importantes de insônia, por exemplo. Em contrapartida, estudos demonstram que distúrbios do sono também são gatilhos para o desenvolvimento de transtornos de ansiedade, e até quadros de depressão e abuso de drogas.”

Um outro dado interessante é que 31% dos motoristas já passaram pelos chamados ‘microsonos’ e muitos deles causaram acidentes devido a esse fenômeno tão comum. A ausência da quantidade diária de sono necessária provoca um aumento na impulsividade, associada a um julgamento mais pobre, além de menos criatividade e consolidação de memórias. Com o cérebro cansado, uma pessoa privada de sono tende a consumir mais drogas, como cafeína e álcool, além de promover a chance de se tornar um obeso devido a liberação de hormônios que requerem ao corpo uma quantidade maior de carboidratos. Pessoas cansadas devido a falta de sono também são mais estressadas, o que já foi comprovado estar associado com maiores chances do surgimento de câncer, diabetes e doenças cardiovasculares.

Dormir pode ser uma forma de restaurar a energia e os nutrientes necessários para o bom funcionamento do cérebro.Também está relacionado com a excreção de metabólitos já desnecessários para esse órgão. A maioria dos  órgãos realiza essa excreção por meio do sistema linfático. No entanto, não existem vasos linfáticos no cérebro. Dessa forma, ele promove uma autolimpeza de forma diferente dos outros órgãos. Isso ocorre por meio do líquido cefalorraquidiano, que preenche os espaços que circundam o cérebro e que recebe os metabólitos excretados pelo mesmo, semelhante ao sistema linfático. Esse líquido interage com a parte externa dos vasos sanguíneos para sequestrar tais metabolitos. O mais interessante é que esse processo ocorre quase exclusivamente durante o sono, em que o líquido cefalorraquidiano corre pelo cérebro, e ao mesmo tempo, o sangue  recobre ainda mais o encéfalo, devido a uma pequena diminuição das células cerebrais nesse período. 

Assim, observa-se que é durante o sono que o cérebro faz sua limpeza diária, já que não pode realizá-la durante o dia enquanto está trabalhando intensamente. Ainda existem muitas perguntas não respondidas no campo do sono e dos sonhos.Não entendemos muito bem, pro exemplo, como  durante o sono algumas memórias são fortalecidas, extinguidas ou então modificadas. Não se sabe sabe também como o sono dispersa as memórias dentro do cérebro. É importante pesquisarmos e investigarmos mais os mecanismos e a funcionalidade do sono no nosso organismo, afinal de contas, dormir é algo que fazemos por 1/3 da nossa vida, logo, sua relevância é indiscutível. Eventualmente, novas respostas surgirão e, inevitavelmente, novas perguntas também. Sorte nossa que a ciência nunca dorme.

Leituras sugeridas

  • Foster RG. and Kreitzman L., Seasons of life: The biological rhythms that enable living things to thrive and survive. 2009, 1 – 303
  • J. J. Iliff, M. Wang, Y. Liao, B. A. Plogg, W. Peng, G. A. Gundersen, H. Benveniste, G. E. Vates, R. Deane, S. A. Goldman, E. A. Nagelhus, M. Nedergaard, A Paravascular Pathway Facilitates CSF Flow Through the Brain Parenchyma and the Clearance of Interstitial Solutes, Including Amyloid β. Sci. Transl. Med. 4, 147ra111. 2012.
  • Sundelin T, Lekander M, Kecklund G, Van Someren EJ, Olsson A, Axelsson J., Cues of fatigue: effects of sleep deprivation on facial appearance. Sleep. 2013 Sep 1;36(9):1355-60
  • Russell Foster. 2013. Why do we sleep? Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=LWULB9Aoopc. Acesso em Setembro de 2014
  • Sidarta Ribeiro. 2014. Para que serve dormir e sonhar? Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=_nqmBwf2pMY. Acesso em Setembro de 2014
  • Jeff Iliff. 2014. One more reason to get a good night’s sleep. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=MJK-dMlATmM. Acesso em outubro de 2014