Estudos no campo da epigenética auxiliam a compreensão da influência de fatores ambientais sobre a nossa saúde e comportamento

Pesquisas relacionam, por exemplo, cuidado da mãe e a resposta hormonal ao estresse em seus filhotes
Talita Alvarenga Valdes
talitavaldes@gmail.com

As ideias propostas pelo naturalista francês Jean-Baptiste de Lamarck no início do século XIX, em sua teoria dos caracteres adquiridos, geralmente são apresentadas como desacreditadas, em contraposição ao conceito de que os organismos mais adaptados ao meio têm maior chance de sobreviver e se reproduzir, proposto por Charles Darwin em 1859, em seu “A Origem das Espécies”. Lamarck propunha que as condições ambientais podem influenciar as características físicas e comportamentais do indivíduo, permitindo que a evolução ocorra em uma ou duas gerações. Hoje, pesquisas no campo da epigenética têm mostrado que ele não estava totalmente equivocado, ao trazerem à tona perspectivas que nos auxiliam a entender a relação entre determinadas características e o ambiente no qual o indivíduo se encontra, concluindo que há forte associação entre eles. Estudos relacionando epigenética com cuidado materno têm demonstrado, por exemplo, a influência do comportamento da mãe no índice de estresse na vida pós-natal da prole, revelando que características relacionadas à dedicação materna em ratos – como amamentar e lamber os filhotes – promovem a diminuição na produção de hormônios relacionados ao estresse na vida dos ratinhos.

Modelo de fatores epigenéticos.
Modificado de <http://commonfund.nih.gov/epigenomics/figure.aspx>

A epigenética é um campo da Biologia que se propõe a estudar as interações entre os genes, bem como a expressão ou supressão dos mesmos, que permitem a formação do fenótipo – ou seja, das características apresentadas por um indivíduo – sem alteração do genótipo – nesse caso, a constituição genética desse mesmo indivíduo. Ela investiga a informação contida no DNA, transmitida na divisão celular, mas que não constitui parte da sequência desse DNA. Andrew P. Feinberg, pesquisador do Centro de Biologia Evolutiva da Universidade de Uppsala, na Suécia,define epigenética como “modificações no genoma que são herdadas durante a divisão celular e que não estão relacionadas com a mudança na sequência do DNA”. Ou seja, diferentemente da genética simples, baseada na mudança na sequência do DNA, a epigenética tem foco justamente em modificações nas atividades dos genes que não são causadas por mudanças na sequência do DNA.

O processo epigenético ocorre através da metilação, que é a ligação de um grupo metil (-CH3) a uma base nitrogenada do DNA chamada citosina, particularmente aquela que vem antes da guanina. Também pode ocorrer através da ligação do grupo acetil (CH3CO-) ao aminoácido lisina ao final de duas histonas (proteínas que auxiliam no enovelamento do DNA e ajudam na sua regulação). Isto, somado à remodelagem de outras proteínas associadas à cromatina e à transposição de certas sequências da fita de DNA, causa mudanças cruciais na maneira que a informação genética é processada na célula. Mais uma vez, destacamos que tudo isso acontece sem alterar as sequências nucleotídicas originais do DNA e com possibilidade de transmissão para as próximas gerações.

Uma sequência de nucleotídeos que compõe o código genético pode ser expressa normalmente ou ser silenciada. Esses processos dependerão da conformação da cromatina (complexo de DNA e proteínas) através da acetilação de histonas. Por exemplo, proteínas transcricionais (proteínas relacionadas à síntese do RNA) podem ser impedidas de acessar o conteúdo do DNA de algumas regiões. Dependendo das modificações ocorridas nas histonas, elas podem mudar a forma como o DNA é embalado, podem compactar essa embalagem, tornando-o inacessível para expressão de seus genes. Contudo, são capazes também de afrouxar a embalagem e fornecer acesso para expressão de determinados genes. Modificações nas histonas são, portanto, de extrema importância para a atividade dos genes.

 

Estresse em recém-nascidos

Michael J. Meaney, pesquisador da Universidade McGill, do Canadá, junto aos seus parceiros, realizou estudos epigenéticos com ratas mães e suas crias, a fim de problematizar a influência do cuidado materno na atividade de hormônios relacionados ao estresse. Os pesquisadores notaram que estímulos físicos associados a cuidados da mãe diminuem os níveis do hormônio ACTH (adrenocorticotrofina) na prole. A pesquisa mostrou, também, que o comportamento afetivo materno promove a eliminação dos grupos metil que guardam a região promotora do gene que sintetiza glicorticoides, possibilitando que a sequencia do gene seja transcrita e a alta taxa de glicorticoide envie sinais ao cérebro inibindo a produção de CRH (hormônio liberador de corticotrofina, que tem importante influência na resposta fisiológica ao estresse). Efeitos significativos do CRH estão presentes em algumas condições psiquiátricas, incluindo depressão e ansiedade. É um importante neurotransmissor e desempenha um papel fundamental na resposta adaptativa e comportamental que ocorre durante períodos de estresse. A transcrição do seu gene aumenta de forma significativa durante períodos de estresse. Recém-nascidos são capazes de reagir ao estresse poucos momentos após o parto. Se forem expostos a estímulos que os ameacem, são capazes de estimular a expressão do gene que sintetiza o CRH. O CRH, por sua vez, é um grande estimulador da secreção exercida pela hipófise de ACTH em humanos. Já a ACTH provoca a libertação de glicocorticoides – hormônios esteroides que, quando unidos ao cortisol, exercem funções metabólicas essenciais ao organismo – da glândula suprarrenal. A síntese e libertação de CRH são inibidas por meio de um sistema de feedback negativo exercido pelo glicocorticoide em determinadas regiões do cérebro.

Variações no cuidado materno durante a primeira semana de vida podem, assim, alterar a expressão dos receptores de glicocorticoides no cérebro em resposta ao estresse. Esse efeito do cuidado materno sobre a expressão de receptores de glicocorticoides envolve modificação epigenética do DNA.

 

 

Outra pesquisa, realizada por Alexandro Ayala, dos National Institutes of Health (NIH), nos Estados Unidos, mostrou o mesmo comportamento em macacos Rhesus. O estudo mostra que macacos criados na ausência das mães respondem com elevações de CRH e isolamento social, quando comparados aos macacos criados em condições normais. É possível relacionar esses eventos à depressão em humanos. Estudos mostram níveis de ACTH em resposta ao estresse seis vezes maiores em mulheres que sofreram abusos na infância, quando comparadas ao grupo controle (mulheres que não sofreram abusos). Ou seja, experiências traumáticas em etapas iniciais da vida predispõem à maior vulnerabilidade aos efeitos epigenéticos do estresse e à depressão na idade adulta.

Cada vez mais pesquisas como essas nos mostram a influência dos fatores ambientais no nosso cotidiano, que muitas vezes impactam de forma negativa a nossa saúde e o nosso comportamento. A Medicina tenta, dia a dia, combater esses efeitos através de terapias e produção de fármacos. Porém, ainda conhecemos muito pouco sobre esse ramo. Quem sabe, com os avanços tecnológicos atuais, poderemos chegar ao ponto de conseguirmos prever e solucionar problemas relacionados a fatores epigenéticos, bem como, através deles, expressarmos ou silenciarmos genes que nos beneficiem de alguma forma, principalmente nos casos de problemas associados às doenças crônicas. Andrea Peripato, pesquisadora do Departamento de Genética e Evolução da UFSCar, comenta em entrevista os estudos em epigenética. Qual a importância, na sua avaliação, dos estudos relacionando epigenética e comportamento materno? "Sempre aprendemos que características complexas, como é o caso do comportamento materno, podem apresentar influência genética e ambiental. Ao tentarmos desvendar os fatores associados a essas características, muitas ferramentas permitem identificar os fatores genéticos associados a esses fenótipos. No entanto, pouco se sabia como entender a variação atribuída ao ambiente. É aí que temos a importância da epigenética, que vem ao encontro dessa necessidade, já que permite identificar o papel do ambiente na variação da característica. Incorporando ambos os fatores, genéticos e epigenéticos, podemos ter um melhor entendimento de como o comportamento materno é modulado."

Você pode nos contar um pouco sobre outros estudos do comportamento materno que tenham relação com os de Michael Meaney? "O grupo do pesquisador Michael Meaney tem sido pioneiro em estudos de epigenética associados com cuidado materno. Como trabalho com cuidado materno posso discorrer um pouco sobre o que nosso grupo vem investigando. Tentamos desvendar fatores genéticos associados à variação de cuidado materno observados no cruzamento entre dois tipos de camundongos previamente selecionados (isto seria como Mendel fez com as ervilhas; temos linhagens puras diferentes de camundongos e fazemos o cruzamento entre elas). Entre a gama de comportamentos que investigamos – posturas maternas de construção de ninhos, limpeza de filhotes, proteção contra intrusos e provisão de leite –, encontramos filhotes que, sofrendo carência nutricional no primeiro dia após o parto, devido a não ejeção de leite na mãe, apresentam um peso ao desmame maior que os filhotes amamentados normalmente. Na idade adulta, esses filhotes que sofreram carência alimentar serão mais pesados devido à deposição de gordura/obesidade. Esse comportamento é conhecido como thrifty phenotype – ou fenótipo econômico – e está associado com epigenética, pois a carência alimentar em uma das janelas do desenvolvimento pode alterar a expressão de genes por mecanismos epigenéticos (metilação, acetilação etc.). Após essa alteração, indivíduos carentes de nutrição passam a acumular todo recurso disponível (este é o fenótipo econômico). Ao término dessa carência, quando passam a ter mais disponibilidade de recursos, com o metabolismo já alterado para acumular energia, eles continuam estocando essa energia, gerando acúmulo em forma de gordura e podendo apresentar síndromes metabólicas associadas à obesidade, tais como diabetes, aumento de colesterol etc. No nosso laboratório, pretendemos investigar quais genes estão com padrão de metilação alterada em relação aos animais que tiveram o desenvolvimento normal. Também investigamos outros fenótipos que podem estar diretamente associados com a falta de cuidado materno epigeneticamente, como depressão e ansiedade. Esses estudos, juntamente com a identificação de fatores genéticos, permitirão entender melhor a variação no cuidado materno."

O que você nos diz sobre a importância da epigenética para o futuro, considerando seus efeitos positivos e negativos? "Esta pergunta é bem ampla e difícil de responder, mas pesquisas em epigenética têm auxiliado todas as áreas da pesquisa básica e já temos implicações na aplicação desses estudos. Muitas pesquisas têm sido feitos para entendimento e tratamento de cânceres e outras patologias que ocorrem devido a alterações nos mecanismos epigenéticos das células. Quanto a efeitos negativos, lembrei-me de casos em que filhos têm processados seus pais a partir do argumento de que o estilo de vida da mãe durante a gravidez ou infância poderiam ter gerado os problemas emocionais que eles apresentam na idade adulta. Isto ainda é muito controverso e precisamos entender realmente todos os fatores associados à variação de uma característica, e a epigenética é apenas uma pequena peça nesse quebra cabeça tão complexo que é uma característica como o comportamento."

 

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