Desreguladores endócrinos

Saiba como plásticos, agrotóxicos e cosméticos podem afetar a saúde e fertilidade dos humanos e dos outros seres vivos.
Isabela Espinoza França
isabelafran@ig.com.br

            O que potes de plástico, produtos de higiene pessoal e alimentos enlatados têm em comum? Segundo vários estudos, tudo! Estes e outros produtos podem conter substâncias chamadas de desreguladores endócrinos, que contaminam o ambiente e causam efeitos adversos à saúde e alterações na função reprodutiva.

Produtos usados no dia a dia também podem ser uma fonte de exposição.
(Foto: Ggarcíajiménez)
(Fonte:  Wikimedia Commons)

            Um desregulador endócrino é toda substância capaz de mimetizar a função de um hormônio natural nos seres vivos ou inibir a atividade normal desse hormônio, alterando o funcionamento do sistema endócrino e, por consequência, prejudicando a saúde do indivíduo. Atualmente, a preocupação com essas substâncias é crescente, pois são encontradas em produtos muito familiares e ambientes bastante comuns, como nossa casa. Estão nas frutas e verduras que ingerimos; no revestimento de latas de alumínio e em plásticos que embalam alimentos; nos produtos de higiene pessoal, como perfumes, maquiagens e filtros solares; e na água que bebemos.

            O sistema endócrino atua em conjunto com o sistema nervoso na coordenação e regulação das funções do nosso corpo e é constituído por três partes: pelo conjunto de glândulas especializadas (hipotálamo, tireoide, pâncreas, gônadas), por mensageiros químicos ou hormônios sintetizados por essas glândulas; e pelas células alvo, que recebem os hormônios específicos e respondem às necessidades corporais do indivíduo. Os hormônios são mensageiros que levam instruções para as células do corpo, dizendo o que elas devem fazer. Nas células, estão os receptores, que são como “a caixa de correio” pela qual a mensagem chega.

            Um hormônio bastante conhecido é a testosterona, responsável pela diferenciação sexual do feto. Ou seja, na presença desse hormônio temos a formação das características masculinas – como formação dos testículos e do pênis, por exemplo – e, no adulto, ele atua sobre o desejo sexual, a produção de espermatozoides e a ereção. A regulação e diferenciação sexual são extremamente importantes para o desenvolvimento do indivíduo, e os hormônios que regulam essa diferenciação são os hormônios sexuais ou esteroides sexuais. Esses hormônios possuem receptores extremamente específicos no interior da célula, o que é essencial para o metabolismo e, por consequência, para a saúde do organismo.          

Produtos de plástico que podem conter substâncias desreguladoras.
(Foto: Cjp24)
(Fonte: Wikimedia Commons)

            As substâncias químicas sintéticas desreguladoras endócrinas sintetizadas pelas indústrias podem ser prejudiciais justamente por bloquearem ou imitarem a ação dos hormônios naturais. Por apresentarem estrutura e função muito semelhantes aos nossos hormônios, elas podem interagir com as células alvo alterando a síntese, secreção, transporte e ligação desses hormônios, o que pode levar a uma modificação da ação e eliminação dos hormônios naturais no organismo e levar a uma nova resposta hormonal. É como se a célula funcionasse como uma fábrica que, para produzir seus produtos, precisa receber as “encomendas” (mensagens). Um organismo saudável manda uma quantidade de mensagem certa e recebe a quantidade de produto certa. Agora, imagine se essa fábrica começa a receber encomendas falsas. Como ela não reconhece o que é falso, começa a produzir mais do que realmente é necessário ou produzir fora do momento adequado e, dessa forma, o organismo fica desregulado. É o que acontece com a maioria dos desreguladores: eles imitam os hormônios esteroides femininos, os estrogênios, afetando o sistema endócrino dos animais e alterando a reprodução e desenvolvimento do organismo. 

Os resíduos dos pesticidas utilizados na agricultura podem ser encontrados em frutas e verduras e contaminar os rios.
(Foto: John Messina)
(Fonte: Wikimedia Commons)

            A hipótese da ação dos desreguladores surgiu na década de 1940, quando médicos receitavam para as mulheres grávidas o hormônio sintético DES (dietilestilbestrol) para promover o crescimento do feto e evitar o aborto. Porém, quando as filhas dessas mulheres atingiam a puberdade, desenvolviam algum tipo de problema do sistema reprodutivo, como gravidez anormal, câncer de útero ou infertilidade. Entre as décadas de 1950 e 1960, foram detectadas anomalias do sistema reprodutivo de jacarés que habitavam um lago na Flórida (EUA) contaminado com o pesticida DDT (diclorodifeniltricloroetano), voltando a atenção de pesquisadores para a ação desse pesticida em animais e, posteriormente, em pessoas. Estudos constataram que o DDT apresentava atividade estrogênica e, apoiando esses resultados, um estudo feito na Dinamarca entre 1938 e 1990 relatou o declínio da qualidade do sêmen de homens.

 

Ação dos desreguladores

            Os desreguladores podem ser encontrados como pesticidas residuais em frutas e hortaliças; em substâncias usadas na produção de plásticos e do revestimento de latas de alumínio (bisfenol e ftalatos); nos alquilfenois usados na fabricação de detergentes domésticos, tintas e cosméticos (maquiagens, hidratantes, filtro solar, perfumes); e em hormônios sintéticos, como pílulas contraceptivas e pílulas para tratamento da menopausa. Os estrogênios naturais e os hormônios sintéticos são excretados pela urina e vão para as estações de tratamento de efluentes domésticos, onde acabam não sendo eliminados e, consequentemente, voltam na água que ingerimos.

            Segundo a pesquisadora Azize Capelli Nassr, que trabalha com toxicologia da reprodução e do desenvolvimento, existe uma documentação significativa sobre os efeitos adversos dos desreguladores endócrinos sobre a saúde reprodutiva. Nos mamíferos, os órgãos reprodutores masculinos foram claramente identificados como um alvo para a ação nociva de muitos desreguladores. Exemplo disso é a síndrome de disgenesia testicular, anomalias do sistema reprodutivo masculino que podem ser hipospádia (abertura anormal do orifício por onde sai a urina), criptorquidia (não descida de um ou dos dois testículos para a bolsa escrotal), baixa contagem de espermatozoides e tumores testiculares.

            A natureza dos compostos, a dose e a extensão da exposição, bem como o período do desenvolvimento do organismo em que ocorre a exposição são fatores que devem ser levados em conta quando se considera os mecanismos que causam os efeitos adversos no desenvolvimento testicular e em sua função. Os efeitos potenciais dos desreguladores endócrinos por meio de transporte pela placenta durante a gravidez e, também, através do leite materno durante a lactação estão bem documentados. “A absorção transplacentária e a detecção fetal de diferentes compostos estrogênicos foram relatados em animais experimentais e em humanos”, conta Azize Nassr, que também relata haver evidências de que a origem dos efeitos adversos encontra-se na exposição fetal.

Algumas das primeiras águias mortas pelo pesticida DDT na década de 50.
(Foto: Albert Herring)
(Fonte: Seney National Wildlife Refuge)

            Ou seja, a exposição a altas concentrações dessas substâncias químicas no organismo das mulheres e das fêmeas de outros animais é de extrema importância, pois elas podem ser transferidas aos embriões, fetos ou filhotes através dos ovos, placenta e leite materno e, dessa forma, afetar o desenvolvimento desses organismos. As crianças e os animais expostos aos desreguladores durante a fase de desenvolvimento podem sofrer desequilíbrios hormonais, o que pode levar a problemas do sistema reprodutivo na fase adulta. Também já se constatou aumento do risco de câncer de mama e de útero, ovários policísticos e endometriose. Já os homens tiveram redução na produção de esperma, aumento do risco de câncer testicular e de próstata e infertilidade.

            Outro problema está no fato dessas substâncias serem, na sua maioria, bioacumulativas, ou seja, elas se acumulam nos tecidos dos animais ao longo da cadeia alimentar, sendo transferidas ao organismo do consumidor final. Um estudo realizado em 2010 pelo biólogo Joe Burnett e colaboradores daVentana Wildlife Society (um programa de recuperação de condores da Califórnia) mostra justamente como esses compostos podem ser persistentes e como passam pela cadeia alimentar. Este é o caso do Condor da Califórnia, o maior pássaro dos Estados Unidos, que está em perigo de extinção. Os biólogos verificaram que os ovos desses animais não vingavam porque a casca era extremamente fina, e atribuíram a causa dessa característica ao pesticida DDT, muito utilizado na década de 1970 e hoje banido dos Estados Unidos.

Efeito dos desreguladores endócrinos são mais acentuados no início do desenvolvimento.
(Foto: Canwest News Service)
(Fonte: Wikimedia Commons)

            Na década de 1970, a empresa Montrose Chemical Corp., hoje fechada, descartou seus resíduos de DDT sem tratamento diretamente no sistema de esgotos de Los Angeles. Esse descarte se assentou no fundo do mar, de onde segue contaminando as águas da costa do Pacífico. Nessa região, são encontrados muitos leões marinhos, que se tornaram o banquete principal dos condores. Os leões marinhos alimentam-se dos peixes contaminados com o DDT e, por fim, o condor se alimenta das carcaças desses mamíferos, o que interfere, posteriormente, na calcificação da casca dos seus ovos.

 

Desafios e soluções

            A questão sobre os efeitos dos desreguladores vem sendo tratada com preocupação por órgãos internacionais como a União Europeia (UE), a Agência de Proteção Ambiental Norte Americana (EPA) e a Organização Mundial de Saúde (OMS), que desenvolveram estratégias de investigação do problema que visam, dentre outros objetivos, distinguir, entre os potenciais desreguladores, quais afetam os ecossistemas.

O maior desafio está na aplicação de técnicas para a remoção desses poluentes no processo de tratamento de efluentes domésticos e industriais. Atualmente, as estratégias mais adequadas para monitoramento dos estrogênios em águas ambientais são os ensaios biológicos, onde são aplicados imunoensaios, cujo objetivo é a produção de anticorpos ou receptores que façam ligações específicas com as substâncias poluentes de atividade estrogênica; a ozonização, onde se utiliza o ozônio no processo oxidativo, alcançando altas remoções de estrogênios nos tratamentos de água potável; o carvão ativado, que é eficiente para remoção de bisfenol e de alguns hormônios; e a nanofiltração e osmose reversa, que, utilizadas em conjunto, removem micropoluentes inorgânicos e orgânicos. A aplicação de um único método não é eficaz na remoção de todos os poluentes ambientais, e é aí que se encontra o grande problema: como empregar essas técnicas em um país como o Brasil, em que em muitas regiões e cidades ainda não existe tratamento de água e esgoto ou, se existe, este é ainda muito precário?

            Se a humanidade não procurar alternativas viáveis para a substituição desses compostos e, também, não melhorar a forma de tratamento dos resíduos industriais e domésticos, em um futuro próximo o Planeta estará bastante contaminado e ficará difícil evitar a exposição de seres humanos e outros animais, fazendo com que aumentem as anomalias ligadas ao sistema reprodutivo e o câncer, bem como provocando a extinção de espécies de animais.