Afinal, quem é o culpado?

Grandes felinos em áreas urbanas e rurais–e os conflitos decorrentes dessa convivência com os homens–são consequência de ações do próprio ser humano.
Jéssica Lopes Tagliatela Navari
jetagli@hotmail.com

Embora sejam raras, é provável que grande parte dos leitores já tenha, em algum momento, se deparado com notícias sobre ataques de grandes felinos a seres humanos em áreas rurais ou urbanas. Mais frequentes são os acidentes envolvendo criações de gado ou outros rebanhos. Muitas vezes, a responsabilidade por essas ocorrências é atribuída aos próprios felinos, que acabam pagando com a própria vida. No entanto, são práticas como caça, ecoturismo artuando de forma equivocada e desmatamentos que causam impactos devastadores sobre comunidades de grandes predadores, gerando alterações comportamentais como, por exemplo, a perda do medo do homem, a busca de alimento nas culturas mantidas em áreas rurais e, ainda que raramente, ataques aos próprios seres humanos.

Uma pesquisa realizada na Universidade Federal do Paraná sobre a predação de animais domésticos por grandes felinos mostra justamente como as onças-pintadas (Panthera onca) daquela região têm sido afetadas pela atividade pecuária e de exploração madeireira e, consequentemente, passaram a predar animais de rebanho e a serem caçadas e mortas. 

 Onça-pintada (Panthera onca). Foto: Ricardo Boulhosa. Fonte: http://procarnivoros.org.br/index.php/animais/onca-pintada-panthera-onca/

Paula Vidolin, autora do estudo, conta que a história de ocupação do Paraná sempre esteve associada à devastação dos recursos naturais. A extração acentuada de vegetação frente às necessidades de ampliação das áreas agriculturáveis e à introdução da pecuária transformaram a fisionomia da vegetação do Estado, resultando em áreas bastante antropizadas (ou seja, alteradas pela atividade dos seres humanos). Ao longo desse processo gradual, a interferência negativa nesses habitats ocasiona o comportamento anormal de sua fauna, que acaba refletindo de forma negativa também na vida humana.

A alteração comportamental dos grandes felinos é explicada pela queda de riqueza nas áreas que ocupam (floresta ombrófila densa e mista) e, consequentemente, com a diminuição das comunidades predadas por esses animais, que passam a buscar nas redondezas (áreas urbanas e rurais) formas de se alimentar. Nesse contexto, Paula Vidolin relata que, em todas as vistorias de ocorrência de predação de onças pintadas ao rebanho, verificou-se intenção de abate dos felinos. Considerando que a restrição de habitat adequado atinge particularmente espécies que possuem densidades populacionais baixas, como os grandes felinos, o risco de extinção dessas espécies é grande, tornando-se maior devido aos conflitos com humanos. 

Um outro exemplo dos conflitos entre grandes felinos e seres humanos vem do Pantanal brasileiro, região que, apesar de ser ocupada em sua quase totalidade por propriedades particulares, é de extrema importância para a conservação de grandes predadores, por apresentar paisagens conservadas. 

Segundo o pesquisador Rafael Chiaravalloti, numa pesquisa sobre a probabilidade de ocupação e separação espacial entre a onça-parda (Puma concolor) e a onça-pintada, realizada no Pantanal, a onça pintada prefere ocupar locais inundados, devido à presença de presas típicas nessa região, como é o caso do jacaré do pantanal e da capivara, por exemplo. Entretanto, a ocorrência de grandes enchentes acaba expulsando esses animais desses ambientes, fazendo com que, ao procurarem lugares mais secos e protegidos, se dirijam às cidades vizinhas e, consequentemente, sejam caçados e mortos. Segundo Ana Carolina Dias Oliveira, analista ambiental do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), esses animais estão procurando se reorganizar; não estão procurando a cidade nem, muitas das vezes, alimentos. Estão sim procurando um novo local, uma nova área de vida. 

Populações de tigres de bengala (Panthera tigris), também têm sido seriamente afetadas tanto pelo desmatamento e fragmentação de seus habitats, quando pela caça ilegal, no continente asiático. Embora vários desses países ainda não demonstrem preocupação adequada com a extinção gradual desses animais, na Índia já existem leis que os protegem. As medidas foram tomadas devido ao fato da população de tigres de bengala ter caído de 3,6 mil para 1,4 mil nos últimos oito anos, principalmente devido ao turismo desenfreado, caracterizado pela construção de hotéis e por carros passeando dentro dos habitats, já que boa parte dos turistas que têm a Índia como destino vão com o desejo de observar esses grandes felinos em seu habitat natural. No entanto, apesar de a Índia ter proibido a caça aos tigres de bengala, não é possível dizer se o esforço de preservação partiu realmente da conscientização sobre a importância de proteção á espécie ou do medo de perder os grandes lucros com o ecoturismo. 

Tigre de bengala (Panthera tigre). Indivíduo morto por envenenamento em retaliação ao ataque de rebanhos. Fonte: http://www.conservationindia.org/articles/human-tiger-conflict-cause-con...

Como consequência dos processos de conservação empreendidos, no Estado de Uttar Pradesh a população de tigres de bengala cresceu tanto que foram registrados cerca de dez ataques à população humana local em meados de fevereiro de 2014. Segundo o biólogo Ullas Karanth, que dirige o programa indiano da Sociedade de Conservação da Vida Selvagem, esses conflitos são o preço do sucesso. Relatórios da WWF (World Wildlife Fund) afirmam que a escassez de presas parece ser uma questão chave para esses felinos, e que o aumento da quantidade de presas significaria não somente mais alimento para os tigres, mas também auxiliaria a reduzir o conflito homem-tigre, uma vez que estes não seriam mais tentados a matar animais domésticos.

Atualmente há programas de conservação de grandes felinos, no Brasil, na Índia e em outros países, e somente o conhecimento sobre o modo de vida desses animais irá permitir que esses programas se tornem viáveis e possam gerar benefícios mútuos para animais e seres humanos, reduzindo os conflitos.

 

 

 

Leituras Sugeridas 

  • Chiaravalloti, R. M. et al. Probabilidade de Ocupação e Separação Espacial entre Onça-Parda (Puma concolor) e Onça-Pintada (Panthera onca) na Borda Oeste do Pantanal. 5º Simpósio sobre recursos naturais e socioeconômicos do pantanal, 2010.
  • Marchini, Silvio; Ricardo Luciano. 2008. Guia de convivência Gente e Onças.