Órgãos humanos em chips

Microchip que contém células humanas é a mais nova tecnologia desenvolvida para testar medicamentos
Bruna Dias de Lima Fragelli
Renan Castelhano Gebara
Ana Cláudia de Souza Pecorari
brufragelli@gmail.com

DOI: 10.4322/temasbio.n3.003

Cães da raça Beagle congelados, coelhos com olhos lacrimejando, celebridades revoltadas e cientistas apedrejados. O uso de animais em pesquisas é um assunto muito polêmico, embora, atualmente, seja o método mais indicado em testes de medicamentos e cosméticos. Nesse contexto, grupos de pesquisa aliados a instituições farmacêuticas desenvolveram um microchip que busca diminuir o uso de animais para fins científicos e aperfeiçoar os resultados obtidos, de modo que, no futuro cada pessoa poderá ter um chip exclusivo, trazendo respostas mais específicas sobre como este indivíduo reagiria a um determinado fármaco, o que diminuiria as chances de ocorrerem os temidos efeitos colaterais.

A tecnologia conhecida como “Organs-on-Chips”, ou em português órgãos em chips, nada mais é do que microchips feitos de acrílico, com aproximadamente 2 cm de comprimento, que contêm camadas de células de um determinado órgão, que são expostas à outras células, medicamentos, substâncias em geral ou até mesmo microrganismos que causam doenças, como bactérias e fungos, com intuito de entender as interações existentes.  Um exemplo disso seria a observação de como se comportam as células do sistema imunológico quando expostas a um tipo de bactéria, e como esse efeito poderia ser otimizado com a utilização de um antibiótico. 

Há anos os cientistas procuram por alternativas para os testes em animais e por novos medicamentos para tratamento das mais variadas doenças que afligem tanto o ser humano, como as demais espécies de seres vivos que habitam nosso planeta. A recente invenção tecnológica de microchips contendo células humanas promete inovar e modificar a realidade científica no que se refere ao âmbito da medicina. A tecnologia “Organs-on-chips” foi desenvolvida por pesquisadores do Instituto de Wyss, vinculado à Universidade de Harvard. O cientista Geraldine Hamilton e sua equipe são os responsáveis pelo desenvolvimento de inúmeros órgãos em chips, como por exemplo: coração, pulmão e fígado, porém, também há protótipos de rins, intestino e medula óssea, sendo pesquisadas por outros cientistas.

Estes microchips são confeccionados de forma semelhantemente à fabricação de chips computacionais. Cada chip é criado a partir um polímero (substância formada por pequenas unidades estruturais que se repetem ao longo da cadeia química da molécula) flexível e resistente, contendo canais por onde passarão micro fluidos, e que serão recobertos por células humanas específicas do órgão a ser testado. 

Em cada chip há um sistema formado por células sanguíneas associadas a células de um órgão específico que se queira simular o funcionamento. O próximo objetivo dos pesquisadores é interligar diversos microchips de distintos órgãos, de modo a entender as respostas do corpo humano como um todo, para que seja possível testar quaisquer efeitos (metabólicos, bioquímicos e genéticos) que os fármacos poderiam causar quando em contato com o nosso organismo, e, provavelmente, trazendo resultados mais confiáveis sobre os diferentes modos de ação.

Esquema conceitual de um chip mostrando o dispositivo que representa o corpo inteiro. Esse tipo de chip aperfeiçoa a tecnologia, rompendo com sua maior dificuldade: o isolamento de órgãos. Fonte: Figura adaptada “Conceptual Schematic of a Human-on-a-Chip”, licenciada sob os direitos autorais de Creative Commons, Attribution-ShareAlike 3.0 Unported (CC BY-SA 3.0). Fonte: A imagem original, que pode ser encontrada em https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Conceptual_Schematic_of_a_Human-..., é de autoria de Timothy.ruban.

Com isso, poderia haver uma diminuição nos testes em animais, o que seria uma solução de cunho ético, poupando a vida de milhares de seres vivos, além de diminuir os gastos para o desenvolvimento e teste de novas substâncias, uma que o custo para manutenção de biotérios (local onde são criados e/ou mantidos animais vivos de qualquer espécie destinados à pesquisa científica) é elevado. As pesquisas também avançam no sentido de implementar os testes na área de cosméticos, em chips que simulariam nossa pele, podendo prever possíveis reações alérgicas e inflamatórias. 

Segundo a FDA, agência reguladora de medicamentos, cosméticos e alimentos dos Estados Unidos, apenas cerca de 20-30% das drogas aprovadas em solo americano foram testadas em crianças, e embora esta instituição incentive esse tipo de teste, há ainda um certo receio em sua realização. Os órgãos em chips seriam uma possível solução para este problema, visto que poderiam ser inseridas células de crianças ou adolescentes neste sistema, de modo a simular as reações aos diferentes medicamentos nas mais variadas faixas etárias.

Chip do pulmão. O dispositivo apresenta três micro-canais. O canal mediano possui uma membrana porosa e é revestido por tecido epitelial. Os outros dois canais usam o vácuo para alongar a membrana, imitando o movimento do órgão. Fonte: Figura adaptada “Lung-on-a-chip”, licenciada sob os direitos autorais de Creative Commons, Attribution-ShareAlike 3.0 Unported (CC BY-SA 3.0). A imagem original, que pode ser encontrada em https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Lung-on-a-Chip.jpg, é de autoria de Timothy.ruban.

O primeiro órgão em chip a ser criado foi o pulmão, divulgado em 2010 em uma publicação na revista Science (artigo completo em leituras sugeridas), no qual foram utilizadas células localizadas no interior da parede do pulmão, que foram dispostas de lados opostos no chip em uma membrana porosa e elástica, a fim de simular as microestruturas do órgão em questão. Abaixo da camada epitelial, foram colocadas células do sangue, de modo a simular a corrente sanguínea. Acima da camada de células pulmonares foi projetado um espaço vazio, por onde passa o ar, e possíveis contaminantes, aos quais o protótipo de órgão seria exposto. Com intuito de simular o estiramento tecidual que ocorre durante a respiração, aplicou-se pressão a vácuo nas laterais do chip. A partir deste modelo, obteve-se respostas de inflamação causadas por bactérias e foram simuladas patologias, como o edema pulmonar, por exemplo.

Atualmente, o uso do modelo animal em pesquisas é o mais eficiente. Alguns animais, como ratos e macacos, respondem a diversas substâncias de maneira semelhante aos seres humanos. Desta forma, podemos obter resultados mais robustos e que podem ser extrapolados de maneira mais segura do que outros métodos alternativos, porém, com a ressalva de que este método também possui suas desvantagens.

Na USP (Universidade de São Paulo), campus de São Carlos, há pesquisas já sendo feitas utilizando a tecnologia de chips. O Prof. Dr. Emanuel Carrilho, do IQSC/USP (Instituto de Química de São Carlos), vem trabalhando com esta nova tecnologia, desenvolvendo chips com tecido sanguíneo, de modo a mimetizar o funcionamento dos vasos sanguíneos; chips para diagnósticos de doenças e que também são utilizados para estudos de propriedades químicas e físicas de várias substâncias que não estão relacionadas à área da saúde diretamente. Neste caso, a tecnologia denominada "lab-on-a-chip”, cria um chip com micro canais que imitam um laboratório. 

 

 

Avanços científicos são essenciais à sociedade, sobretudo na área médica, visto o constante surgimento de novas doenças e novas versões, mais resistentes, de enfermidades já conhecidas. Se a implementação dos chips for bem sucedida, substâncias poderão ser testadas com mais confiabilidade. O objetivo dos cientistas é de que os testes nesses chips ocorram com células de pessoas de diversas etnias, faixas etárias e das mais variadas localidades do globo, de modo a conhecer e entender os efeitos dessas substâncias nos mais diversos organismos, acelerando pesquisas relacionadas a tratamentos para doenças como o câncer e a AIDS (síndrome da imunodeficiência adquirida, que pode acometer os portadores do vírus HIV). O CONCEA (Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal), um órgão integrante do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), que controla e fiscaliza pesquisas com animais, reconhece 17 métodos alternativos à experimentação animal, mas ainda não há nada sobre os órgãos em chips.  Em março de 2015, a FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) organizou o workshop Challenges and perspectives in research on alternatives to animal testing (Desafios e perspectivas na pesquisa sobre alternativas à experimentação animal) para debater o assunto. Os pesquisadores afirmam que a nova tecnologia de chip é um avanço gigantesco para a ciência e para a população e que o Brasil deve participar desse processo. 

 

Leituras sugeridas

  • Huh D, Matthews BD, Mammoto A, Montoya-Zavala M, Hsin HY, et al. Reconstituting Organ-Level Lung Functions on a Chip. Science. 2010;328:1662-1668.  
  • U.S. Food and Drug Administration (FDA). 2010. Should Your Child Be in a Clinical Trial?. Disponível em www.fda.gov/ForConsumers/ConsumerUpdates/ucm048699.htm. Acesso em Novembro 22, 2015.