Vida resistente além dos limites da Terra

Cientistas brasileiros cogitam o uso do verme Caenorhabditis elegans como organismo modelo na astrobiologia
Homero Garcia Motta
Thaís Coimbra Marigo
Viviane Querollaine Pires Turman
homero.gmotta@outlook.com

Imaginem Yuri Gagarin na manhã seguinte após descobrir que seria o primeiro homem a viajar pelo espaço. Talvez sentisse inquietação pela partida iminente, andando energicamente pela sala de estar. Talvez vivenciasse profundo nervosismo causado pela incerteza da segurança da viagem. Certamente percebia a frequência cardíaca elevada, a respiração ofegante, as mãos úmidas de suor. Nesta linha, como se sentiria um verme, o nematódeo Caenorhabditis elegans, ao constatar ser o mais novo candidato apontado como modelo da astrobiologia? Provavelmente nada, já que este verme não tem consciência. 

Pesquisadores demonstraram que esse pequeno verme, menor que 1 mm de tamanho, que vive no solo do hemisfério norte alimentando-se de bactérias, apresenta grande resistência quando submetido a uma força gravitacional 400 mil vezes maior que a do nosso planeta. Isto dá suporte à ideia de que, se estes seres diminutos podem sobreviver a condições tão extremas, outros planetas com condições similares podem também abrigar vida.

Nematódeo Caenorhabditis elegans, utilizado como objeto de estudo. Fonte:   Yulli Roxenne Albuquerque.

Os brasileiros Tiago Pereira e Tiago de Souza, ambos pesquisadores do Departamento de Genética na USP de Ribeirão Preto, são responsáveis por este trabalho e potenciais inspirações para futuras ficções científicas. Eles já tinham ciência da invulnerabilidade do nematódeo C. elegans; registros prévios mostraram que estes invertebrados sobreviveram tanto à exposição no espaço num período de tempo de dois ciclos de vida da espécie, quanto à reentrada na atmosfera terrestre quando o ônibus espacial Columbia - o qual levava estes vermes para uma bateria de testes no espaço - se desintegrou no ar. De acordo com Pereira, a grande motivação dos cientistas para a realização do trabalho foi “a tentativa de caracterizar os limites físicos que permitem a ocorrência da vida tal como conhecemos”.   

Nessa tentativa de preencher o conhecimento que permeia tal temática, diversos trabalhos anteriores utilizaram-se da submissão de organismos, majoritariamente unicelulares, à condições extremas de temperatura, salinidade, radiação e pH. No entanto, “a força gravitacional é um parâmetro físico muito pouco explorado e de imensa relevância quando se considera a possibilidade de vida no cosmos, isto é, em outros planetas cujas gravidades podem ser maiores que a nossa”, diz Pereira. Logo, os pesquisadores brasileiros aliaram dois elementos conjuntamente pouco investigados – o uso de hiperaceleração e o emprego desta em organismos multicelulares – com a finalidade de arquitetar seu projeto e responder seus questionamentos.

A primeira investida na busca por respostas teve como inspiração o trabalho de Shigeru Deguchi, do Instituto de Biogeociências no Japão, e colaboradores, os quais aplicaram valores exorbitantes (acima de 400.000 x g) de hipergravidade em organismos procariotos. Os pesquisadores brasileiros reproduziram toda a metodologia de Deguchi empregando, entretanto, um espécime multicelular, o nematódeo Panagrolaimus superbus. No primeiro teste, utilizou-se o verme em condição de animação suspensa - também conhecida por anidrobiose, ou seja, um estado de autopreservação em que a atividade metabólica do animal é drasticamente reduzida por decorrência da perda d’água em excesso. Ao fim do experimento, verificou-se a sobrevivência dos indivíduos. Num segundo teste, empregou-se animais hidratados e, para a surpresa de ambos os brasileiros, estes também toleraram a força hiperbólica aplicada. 

Apesar dos dados surpreendentes coletados, os pesquisadores temiam que estes fossem desdenhados por conta da impopularidade do verme P. superbus dentro da comunidade científica, decidindo, por consequência, fazer uso do nematódeo C. elegans como objeto de estudo. As experimentações com o invertebrado C. elegans começaram com a escolha de populações mistas, compostas por ovos, larvas em estágios de desenvolvimento variados e adultos. Os pesquisadores desejavam analisar oscilações no desempenho do animal em múltiplos aspectos, como viabilidade, comportamento e morfologia, entre outros. A viabilidade, ou seja, a capacidade do verme de se manter funcionalmente vivo, foi definida em termos técnicos como a relação entre vermes vivos ao final do experimento e seu número total inicial. Quanto ao comportamento, os cientistas avaliaram alterações no padrão de locomoção, como letargia, presença de contrações musculares descontroladas ou de movimento circular ao redor de si mesmo. Em relação à morfologia, analisaram o tamanho geral dos animais, bem como a estrutura e integridade dos ovos e nematódeos.

Investigações acerca de mudanças metabólicas ou no desenvolvimento do verme foram igualmente realizadas entre populações de larvas em um mesmo estágio de desenvolvimento. As análises metabólicas avaliaram a atividade celular, ao passo que análises de desenvolvimento envolveram avaliações sobre o crescimento populacional. Todos os grupos experimentais foram colocados numa ultracentrífuga e submetidos a uma hiperaceleração de 400.000 x g, por 1 hora, à 4ºC. 

     
     Manobra looping vertical realizado por aviões Caça. Fonte: Banco de         imagens de domínio público. Disponível em: https://bit.ly/2PXLjzD

Os resultados do experimento foram de fato curiosos. Embora submetidos a uma aceleração exorbitante, não foram observadas alterações significativas nos vermes. Segundo os dados recolhidos na pesquisa, o potencial reprodutivo e a viabilidade se preservaram intactos.  Além disso, não foi verificada nenhuma mudança na morfologia ou comportamento do animal. Segundo Pereira, estes resultados apontam o surgimento da vida extraterrestre como uma possibilidade plausível. Ele segue afirmando que tal constatação é interessante já que "permite incluir planetas massivos e de imensa força gravitacional como potenciais habitats para o surgimento da vida”.

Ainda considerando os resultados, pode-se afirmar que o conceito de troca de formas primitivas de vida entre planetas concebido pela teoria da Panspermia seria, a grosso modo, corroborado pelo estudo. Esta teoria admite que a chegada da vida à Terra teria sido mediada por “caronas intergalácticas”. Os desbravadores do nosso planeta, antes de aterrissarem aqui, teriam viajado pelo espaço na superfície de rochas desgarradas do seu corpo celeste de origem devido a algum evento catastrófico. A astrônoma da NASA Rachel Mastrapa e sua equipe contabilizaram a ordem de grandeza da hiperaceleração a que seriam expostos tais organismos, caso vivenciassem eventos balísticos de tamanhas proporções. Segundo os cálculos, a estimativa estaria em torno de 10⁵ x g, valor este, aliás, menor do que experimentado pelos vermes do estudo.

O químico suíço Arrhenius, no início do século XX, redigiu e publicou suas abstrações quanto a ideia de Panspermia. Todavia, a carência de argumentos para seu amparo acarretou o descrédito destas ideias entre a comunidade científica e seu subsequente esquecimento, como afirma o paleontólogo e entusiasta na área da Astronomia, Marcelo Adorna Fernandes. Na década de 90, tal teoria ressurge alicerçada em estudos envolvendo meteoritos, como Murchison, encontrado na Austrália em 1969. Verificou-se nestes fragmentos a presença de compostos orgânicos, entre eles açúcares e moléculas precursoras de aminoácidos, bem como de água. A partir de então, diversas vertentes concernentes à ideia da Panspermia foram postuladas, uma delas, inclusive, admite que a presença de moléculas orgânicas errantes no espaço teria como origem a própria Terra. A dispersão destas moléculas se daria ao impacto de um objeto extraterreste de grande massa. 

Entretanto, a teoria da Panspermia sofre duras críticas por parte da comunidade de estudiosos na temática. Contudo, ressalta-se que debates e contestações são peças primordiais na construção da ciência, fundamentais para a ampliação de novos pontos de vista. O crescimento da Astrobiologia e dos estudos com organismos modelos, por exemplo, redefiniu o ponto de partida na busca por vida extraterrestre e nos revelou que algumas condições adversas encontradas nos vários corpos do sistema solar, na verdade, podem ser toleráveis. Para isso, basta expandirmos todo o espectro de peculiaridades que o conceito de vida abrange, particularmente como elemento fundamental a água no estado líquido, afirma Fernandes. Assim, lugares onde parece impossível a sobrevivência de seres humanos, pode revelar-se numa condição muito boa para um verme microscópico. 

 

 

Leituras sugeridas: 

  • Souza, TAJ, Pereira, TC. Caenorhabditis elegans Tolerates Hyperaccelerations up to 400,000 x g. Astrobiology. 2018; p:825-833
  • Mastrapa, R.M.E., Glanzberg, H., Head, J.N., Melosh, H.J., and Nicholson, W.L. Survival of bacteria exposed to extreme acceleration: implications for panspermia. Earth and Planetary Science Letter. 2001; p:189:1–8.
  • Deguchi, S. et al. Microbial growth at hyperaccelerations up to 403,627 x g. Proceedings Of The National Academy Of Sciences. 2011; p:7997-8002.
  • Leonelli, Sabina; Ankeny, Rachel A. What makes a model organism? Endeavour. 2013; p:209-212.