Serpentes e medicina: quando as peçonhas salvam vidas

Engana-se quem pensa que serpentes peçonhentas só causam danos à saúde humana.
Bianca Cruz Pachane
Pollyana V. Wenzel Sanches
Yago Barros de Souza
biancapachane@gmail.com
Charge. Autoria: Bianca Cruz Pachane

Corpo alongado. Pernas e patas ausentes. Bote rápido e certeiro. Poucas dão algum sinal quando nos aproximamos. Só de pensar nessas características, algumas pessoas até arrepiam. Dá pra imaginar de quem estamos falando, certo? Pois é, as serpentes causam um medo e tanto. Apesar dessa má fama, elas são muito importantes para o equilíbrio do ambiente onde vivem. Mas vem aqui que vamos te contar uma coisinha interessante: ela é muito importante para saúde humana também! Porém, antes de contar essa qualidade enorme das serpentes, precisamos deixar claro que para ser considerada peçonhenta esses animais precisam apresentar duas características principais, que são a presença de glândula capaz de produzir veneno e dentes capazes de inocular tal veneno na presa. Somente serpentes que apresentam tais atributos podem ser utilizadas na medicina humana.

Quando precisam se defender ou atacar uma presa, as serpentes armam o bote e mordem suas vítimas com a intenção de inocular o veneno para dentro do organismo. Esse veneno tem como função primordial causar injúrias na vítima, sendo uma mistura de substâncias capazes de causar lesões teciduais, como inflamações e morte celular, além de toxicidade aos órgãos e coagulação sanguínea. Essas substâncias geralmente são enzimas, peptídeos e proteínas, e é nesse cenário que o benefício das serpentes para os humanos se torna mais evidente: tais substâncias, quando isoladas e estudadas, são utilizadas como matéria prima para criação de medicamentos. Sim, sabe aquele remedinho que controla pressão alta, conhecido como Captopril? É um exemplo claro e antigo de medicamento fabricado através de substâncias isoladas do veneno de uma serpente - neste caso, da jararaca (Bothrops jararaca).

Atualmente, muitas pesquisas têm utilizado o veneno de serpentes como base para buscar novos medicamentos para doenças graves, como para o tratamento de cânceres. Nessa busca, pesquisadores da Universidade Técnica de Munique (Alemanha) desenvolveram um composto químico com muito potencial de virar uma droga para o tratamento de glioblastoma: o Cilengitide. Ele foi descoberto no início dos anos 1990, e desde então, foi aprovado em duas das cinco fases que um medicamento precisa passar para ser usado em humanos. No atual momento, ele está em fase 3, o que significa que está em testes em mamíferos. Esse composto já passou por testes bioquímicos e em culturas de células tumorais de glioblastoma, mas ainda faltam completar os testes em mamíferos superiores e em clínica para que ele seja considerado um medicamento. Essas são algumas das precauções que as indústrias farmacêuticas tomam para que o remédio seja seguro para uso humano.

Diagrama indicando as etapas de desenvolvimento de novos medicamentos segundo a FDA. Adaptado de: “How Drugs are Developed”, U.S.Food and Drug Administration. Disponível em: https://www.fda.gov/Drugs/DevelopmentApprovalProcess/HowDrugsareDevelope....

E qual o efeito do Cilengitide? Ele impede que uma proteína ligue as células tumorais ao tecido onde ele cresceu, além de interromper a formação de novos vasos sanguíneos ao redor do tumor. Isso significa que o tumor cessa seu crescimento, deixa de aderir ao tecido atingido, e suspende o recebimento dos nutrientes do nosso sangue. Sem suporte e sem alimento, ele definha. Já fraco, células de defesa ou outros medicamentos tóxicos somente as células cancerígenas o atacam, e ele eventualmente desaparece. Esse possível medicamento foi desenvolvido baseado estruturalmente nas desintegrinas, proteínas presentes nos venenos de víboras como a jararaca (Bothrops jararaca) e a cascavel (nome genérico dado as serpentes do gênero Crotalus). Sabemos atualmente que várias espécies de serpentes podem ser fontes de novos medicamentos. O veneno da jararaca-urutu (Bothrops alternatus), por exemplo, serviu de base para a pesquisa anticâncer da Professora Heloísa Selistre, do Laboratório de Bioquímica e Biologia Molecular da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos). Estudos estão sendo feitos com duas proteínas extraídas desse veneno, as quais podem afetar a metástase de alguns cânceres e a formação de novos vasos ao redor do tumor.

As aplicações médicas não param por aí: além das pesquisas relacionadas ao câncer, muitos estudos têm demonstrado que as peçonhas de serpentes são fontes de grandes inovações. Um exemplo disso são os adesivos cirúrgicos. O adesivo de fibrina, por exemplo, é constituído de fibrinogênio de búfalo - um fator coagulante - e de uma enzima - trombina- símile - extraída da peçonha de uma subespécie de cascavel (Crotalus durissus terrificus). Com o rompimento de vasos sanguíneos causados por uma lesão, o processo de cicatrização inicia-se, de forma que os adesivos cirúrgicos aceleram esse processo unindo as extremidades dos vasos e evitando a hemorragia. Estudos demonstraram que o adesivo cirúrgico composto por enzimas provenientes da peçonha de cascavel são muito mais eficientes no processo de cicatrização em casos de enxerto após a retirada de câncer de pele no nariz e na cura de úlceras venosas.

Mesmo a temida mamba negra (Dendroaspis polylepis), uma das espécies mais venenosas do continente africano, pode contribuir para o desenvolvimento de compostos medicamentosos. Em sua peçonha há certas substâncias conhecidas como mambalgines capazes de inibir a dor da presa. Tais substâncias mostraram-se como analgésicos tão eficientes quanto a morfina, sem gerar, no entanto, intolerância no organismo e dificuldade respiratória nos ratos utilizados em certos estudos.

Desordens psiquiátricas não podem ser tratadas com o auxílio da peçonha das serpentes. Pesquisas lideradas pela Universidade de Marseilles (França) demonstraram que a peçonha da coral costa riquenha (Micrurus mipartitus) possui substâncias denominadas MmTX1 e MmTX2 que podem, futuramente, impulsionar estudos que visam combater a esquizofrenia, além de epilepsia e dor crônica.

Apesar do medo geralmente associado ao encontro de uma serpente, o potencial das aplicações médicas das substâncias produzidas junto à peçonha nos leva a concluir o quão importante é a preservação da biodiversidade das serpentes. Agora que você já sabe, que tal explicar a amigos e familiares que não há necessidade de matar aquela cobra que está perdida e que só precisa ser transportada para seu hábitat natural?

 

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