Cara de um...focinho de outro?

Mais do que apenas serem bons amigos, cães e seus donos se comportam de maneira similar
Adriana Fernandes Machado de Oliveira
adrianafmo@gmail.com

DOI: 10.4322/temasbio.n2.019

Que o cão daquela vizinha chata é um ranzinza, ninguém duvida. Mas o que você diria se alguém garantisse que os cães e seus donos têm mais do que um teto em comum? É o que diz estudo realizado em colaboração entre duas universidades de Viena e Budapeste. Os pesquisadores analisaram cinco traços de personalidade em cães e seus donos e descobriram que quatro deles estão fortemente relacionados: neuroticismo, extroversão, amabilidade e escrupulosidade. Fora da lista, ficou abertura para experiências. Mas calma que já vamos explicar o que significam essas palavras difíceis, conhecidas na Psicologia como “Big Five”!

Há muitas evidências já encontradas em humanos de que os similares – e não os opostos, como diz o ditado – se atraem. Acredita-se que as semelhanças ajudam a manter um relacionamento amoroso ou uma amizade, pois minimizam o risco de discórdia e conflitos entre a dupla. Além do mais, um amigo que pense e aja de acordo conosco reforça nossas crenças sobre nós mesmos e o mundo, aprimorando esse elo interpessoal. Como as pessoas também se relacionam socialmente com várias outras espécies animais, faz sentido imaginar que a relação com o mais antigo companheiro animal já domesticado teria características similares.

Os donos participantes da pesquisa citada já conviviam com seus cães há pelo menos dez meses e responderam a um questionário sobre sua própria personalidade e a de seu parceiro canino. O questionário trazia justamente perguntas sobre os cinco traços de personalidade mais frequentemente analisados em humanos, inclusive em entrevistas de emprego. São estes os “Big Five”:

Neuroticismo – refere-se à instabilidade emocional. Um alto grau de neuroticismo sugere um indivíduo sensível e nervoso, com reações emocionais negativas prolongadas, enquanto baixo grau de neuroticismo está ligado a indivíduos seguros, calmos e confiantes.

Extroversão – relaciona-se com o envolvimento com o mundo externo.  De um lado, indivíduos extrovertidos são sociáveis e entusiastas, enquanto introvertidos são mais reservados e solitários.

Escrupulosidade – caracteriza indivíduos trabalhadores, autodisciplinados e eficientes em um extremo, e indivíduos desorganizados, descuidados e preguiçosos no outro extremo.

Amabilidade – está ligado à preocupação com a harmonia social. Os indivíduos são amigáveis, compassivos e cooperantes, que geralmente se relacionam bem com as pessoas, ou são frios, cruéis e desconfiados, que priorizam seu próprio interesse.

Abertura para experiências – separa os indivíduos intelectuais e imaginativos daqueles com o “pé no chão”. Indivíduos mais abertos são mais criativos, sensíveis e curiosos; já aqueles com menor grau de abertura são mais cautelosos e convencionais.

      Cara de um, focinho de outro. Fonte: Tomado de anúncio de ração em revistas da marca Cesar

As respostas dos donos sobre esses traços indicaram grande similaridade na personalidade deles e dos felpudos. Nas relações entre humanos, há grande correlação do grau de abertura para experiências entre duas pessoas; com nossos amigos peludos, também foi encontrada uma correlação, porém no grau de neuroticismo do dono e de seu pet. Um dono mais ansioso e neurótico provavelmente deixa seu cãozinho mais nervoso também, pois o trata de forma mais inconsistente ou superprotetora, impedindo que o animal se socialize adequadamente. Porém, enquanto a presença de alguma fobia no cão pode trazer angústias a seu dono ansioso, a ansiedade do dono não implica maior incidência de fobias no cão.

Como esses resultados vieram através das respostas dos próprios donos, havia a preocupação com um fenômeno da Psicologia chamado projeção. Esse mecanismo, estudado por Freud e sua filha, Anna, leva uma pessoa a atribuir a outro indivíduo seus sentimentos, desejos, pensamentos e motivações pessoais, como forma de defesa psicológica. Para garantir que o dono não estivesse projetando em seu cão suas próprias características, a personalidade do animalzinho também foi avaliada por outro membro da família. Dessa forma, respostas enviesadas puderam ser subtraídas da equação.

Dos cinco traços de personalidade, o grau de abertura para experiências deixou de apresentar correspondência entre o dono e seu cão. Porém, pode ser que o dono estivesse projetando suas próprias habilidades intelectuais no animal, em vez de perceber que o amigo de quatro patas apresentava um intelecto inferior ou superior ao seu. As demais características encontraram boas correspondência entre o dono e seu cão.

Para explicar tal semelhança, surgiram três hipóteses. A primeira foi justamente de que as similaridades seriam fruto da projeção dos traços pessoais do dono ao cão – o que foi logo contestado com a ajuda de outros membros da família. Quando avaliados por outras pessoas, os cães ainda assim apresentaram personalidade muito parecida com a do dono.

Outra possibilidade seria a de que os indivíduos de uma relação se tornam mais parecidos um com o outro ao longo do tempo. Nessa linha de raciocínio, cães que convivem há mais tempo com seus humanos seriam mais parecidos com eles, diferentemente de relacionamentos mais recentes. Porém, essa ideia não encontrou fundamentos na pesquisa, que diz que a correlação das personalidades cão-dono não mudou conforme o tempo de convivência. É interessante notar que o mesmo acontece em casamentos (entre humanos): casais juntos há muito tempo também não apresentam mais similaridades do que casais recém-formados. Com relação à convivência, o que o estudo descobriu foi que, quanto mais longa a amizade do dono com seu cão, maior é a probabilidade de que o animal seja mais introvertido e cauteloso, demonstrando menos amabilidade e curiosidade – ainda que isso possa ser explicado pela própria idade mais avançada dos cães há mais tempo em seus lares humanos.

Em um caminho inverso, a última hipótese propõe que as pessoas tendem a procurar ativamente por companheiros domésticos parecidos consigo mesmas – o que encontra apoio em estudos que analisam a personalidade de donos de cães ferozes e parece ser a sugestão que mais se adequa aos resultados encontrados. Essa escolha do parceiro animal estaria ligada a fatores cognitivos, psicológicos e culturais, e nos proporciona um insight acerca do desenvolvimento e da manutenção das próprias relações sociais entre humanos. De fato, nossos bichinhos de estimação têm muito mais a dizer sobre nós do que imaginamos (principalmente na hora de escolher entre um ou outro cãozinho)! 

 

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